"Que seja doce."(CFA)

terça-feira, agosto 31, 2004

Lembranças acesas

“A noite acabou, talvez tenhamos que fugir sem você
Mas não, não vá agora, quero honras e promessas
Lembranças e histórias
Somos pássaro novo longe do ninho

Eu sei...” (Eu sei, Legião Urbana)

Cabelo grande, calça rasgada, desenha lápides no caderno, empresta o vinil, ouça alto, diz. Caminha comigo pela cidade, somos jovens, acho que somos velhos, sérios e muito graves para a idade que temos, nem quinze, minh amãe quer valsa, não digo, aceito ir pra Índia, o pai não deixa, diz que não vou a lugar nenhum se não quero Londres, não, não quero Big Ben, quero areia do Egito, pode ser? Rabisco letras de música na página branca, na biblioteca, lemos Christiane F escondido, olhamo-nos e sorrimos, nos entendemos assim, no limite do calado de cada um. Um dia vou embora, penso, mas não digo, despedidas não, ainda não. Subimos a ladeira, onde as meninas não sabem se gostam ou não do menino com fama de rebelde, expulso de colégio, que fuma e bebe cerveja. Quantos irmãos ele tem?, nunca pergunto, sei que o pai, ele discute muito e tal. A mãe é o ponto fraco, sei pela voz que muda, fica doce, quando conta. Passo a mão por seu cabelo negro, abraço e digo que alguém precisa de abraço vez em quando, quem? ainda não sei, ele ri, encostamos um no outro, apoiados, e assim ficamos, tempo não contado no relógio. Queremos rock pesado no último volume, usamos preto, quero uma tatuagem de naja na perna, mãe não deixa, permite um beija-flor, quero caveira, sem acordos, concessões, ah, você não se compadece ao visitar o teu eu mais verde? Agora, quem olho nesse retrato, lembrança, memória causa uma ternura como se fosse outro desapegado de mim.

Quanto tempo, quem sentiu primeiro, nunca foi se despedir, nunca disse nada, você também sentiu? É , eu também, lembra da vez, daquela vez, ilumina a minha vida, na frente de todo mundo, vela na mão, um rapaz tímido, sempre, fama besta, falar assim, eu quase chorando, não diga mais nada, me abraça, eu também, todo mundo olhando, deixa pra lá, todo mundo quieto, boquiaberto, esquece dos outros, não me importa, ilumina, eu vou embora, sei disso, fala nada, só abraça, ilumina a minha vida.

Maio, abril, tanto faz, 2001, olha do sétimo andar na varanda, vê o mar, chora muito, na televisão ligada uma banda qualquer, o vocalista lembra tanto, dói de um jeito, tudo intensamente, espancando os sentidos, noites sem dormir, um corpo na cama que não importa o nome, os copos sujos de bebida, o cinzeiro cheio, senta na bancada, o vento, o vento, tudo , você não sabe, tu-do, latejando, contorcendo, todos os nomes, rostos, possibilidades, retrocedem, você não sabe, eu não sou daqui, marinheiro só, eu não tenho amor, amor, amor, mancada, besteira, não acredito mais, não sinto, nunca senti, mentira, alguém mentiu? Falseou?prometeu?, conversa fiada, sério, abuso de fraqueza, agora, assim, quebraram minha asa, caí sozinho, aqui dentro, fraturas tantas que me assustam, quero fim, fim, fim, dane-se séculos de escuridão no inferno, não me importo, porra, não me importo, fantasmas são lúcidos?, eu não sei, só quero um pouco desse alívio que não encontro, o barulho da tevê ligada, olho, um relance, penso, aquele menino, cabelos e olhos de uma escuridão possível de sonhos calmos, aquele, não, não é ele, mas lembra, lembra, lembra, é possível, amor, amor, amor de criança é isso, ilumina minha vida, só mais um dia, resisto só mais um dia, nem que seja pra te dizer que naquela varanda, não voei noite adentro porque lembrei e você estava lá, menino ainda, bonito, com uma vela barata na mão, dizendo ilumina minha vida.



segunda-feira, agosto 30, 2004

Gato exato

"Tivemos tudo, não faltou nada
E ainda a madrugada nos saudou na estrada
Que ficou toda dourada e azul"
(Vera gata, Caetano Veloso)

Bate a cinza (ou poeira?) no casaco. Olha o relógio no pulso da mulher parada no sinal. Cinco ou seis da tarde. Agüenta o latejar das veias nas têmporas, não se aflige com o tique nervoso de tremer a pálpebra esquerda. Sente ainda o cheiro grudado no corpo, demarcando território talvez, não importa, inspira com força aquele cheiro, com olhos fechados quase. Com força, passa a língua pelas gengivas até que sangrem e percebe que o gosto tem cor. Vinho. O Amor novo despontando dentro da carne, violento e bom, descoberta que exaure e sacia, medo que não suspeitava. Os músculos das costas doem, sorri ao apalpá-los: perceber-se devasso e contorcionista torna o cotidiano de ternos e cafés suportável. Conversa com as pessoas sem enxergá-las, dentro passam filmes inventados e reprises das noites, das febres. Sente-se desperto, lúcido como se abrissem (quem?Deuses sem nome ou rosto) um universo inteiro, de doçura selvagem.

sexta-feira, agosto 27, 2004

Anotações sob um amor urbano, parte II


“É para você que escrevo, hipócrita, para você.” (Ana C.)

A cidade em sua eterna cor laranja mesmo quando anoitece. Você insiste em seus jogos de palavras, duelos e cortes verbais madrugada adentro, rituais particulares de abandono e ciúme, anoto o número na madeira do meu peito e certas noites, prometo talhar um novo código para esta porta que insiste em abrir sozinha, fantasmagórica, ao ouvir sua voz. Não, não estamos doentes, nem a cidade, nada, nada está podre nestas noites embora matem, trucidem, matem, assassinem e espanquem o homem bicho de Bandeira nas praças de uma cidade cinza, agreste em sua rotina de tornar a carne em concreto e vidro. Acordo, penso no sangue, no vermelho tornado lago, abundante fonte de maldições e gemidos, sonho com dragões disfarçados, santidades que te fazem rir, converso com a Sombra em pele de cão e debatemos o futuro que não teremos. Acordo, meninos dormem nos esgotos, perto das dunas de um barato que não existe mais, enquanto outros meninos quebram garrafas e capotam seus carros, não, a cidade não está morta, nós, nós estamos morrendo, jovens e perdidos, embora você não sinta pena, nem se compadeça, certas noites, acordo e não consigo dormir pensando na dor apenas, nessa Dor intocável de estar vivo. Quero confessar que nunca sei, nunca soube e assim mesmo acredito e sigo, cego e tosco e sem direção precisa, esperando que você insista, que não se acovarde e também siga. Onde, ainda não sei, não sabemos.

Quando te vi, a primeira vez, meus pés queriam estar descalços, tive vergonha da versão que apresentava bêbada, confusa, com medo. Quis encenar alguém certo & seguro & esperto em sua andança, mas não conseguia me equilibrar decentemente, esbarrava nos cigarros que você insistia em acender, andando ao meu lado, pela rua suja. E senti alívio ao tocar teu ombro, ao tocar teu braço, cogitava se poderíamos ser reais & sinceros & estranhamente puros apesar de todos os esquemas e pecados que cometíamos em nome de um desespero, de um pavor sem nome, sem definição. Saltei dentro deste escuro onde nos encarávamos, onde você me dizia haver um quarto prometido para que escapássemos, esticava minha mão e tocava teus dedos longos e sabia então que poderia ser possível, poderia, poderia, repetia como uma prece avessa, tão contrita, tão séria, você distraído em sua suposta timidez, agoniado também, onde poderíamos, onde iríamos depois de todas as palavras e confissões e risos? Foi assim, com este misto de tons e cores, que minha boca exausta beijou a sua, na esquina mal iluminada, de uma rua antiga, pedia para que você não fugisse, perdoasse a ousadia de apaixonar-me, de nos apaixonarmos, saltarmos sem rede, sem plano B, sem nada, de maneira fatal e agoniada, e nenhuma dúvida. Kamikases & crianças & febris, nunca soubemos outra medida que não fosse o exagero de querer e pedir e sentir tudo, tu-do, corpo reconhecendo gosto, cheiro, redescobertas que não suspeitávamos, mas que ainda assim temíamos. Lembro do teu rosto assombrado atrás das janelas de madeira, o silencioso espanto de uma volta inesperada para uma casa que não fazíamos idéia.

Você queria Londres, eu sonhava com a areia do Egito, cobrindo a tudo, o sol amarelo, absurdamente amarelo tornando morena a minha pele, e meus olhos mais claros, queria ser tuareg, contar as miragens, os oásis, enquanto você queria o fog, a chuva, a violência estrangeira nos julgando. Não, você queria estar só naquele frio úmido, mandar postais cantando a saudade e amor guardado, fingia não ouvir, queria entender, não sabia como sei hoje, o tempo é senhor cretino e sábio, sonhos são matéria de desastre em gente que não tem as rédeas dos sentidos. Não penso em gritar verdades em teu ouvido, calo declarações azuís, observo as pegadas na lama da rua, o meu jeito bandoleiro de experimentar venenos, você teme que um dia não retorne desse teatro que vezenquando faço, minha torre encenada, que talvez proteja essa outra que um dia te disse não, não espero mais.

Mas não estamos mortos, a cidade laranja resiste, ainda, ainda não, ainda aguardamos o desfecho , a trombeta do anjo, embora você finja ceticismos de menino lido e estudado, guardo por dois, o sagrado, minhas visões do cadafalso. Mesmo que você retorne, um dia, e me pergunte de onde, onde, como, qual meu primeiro nome quando os cabelos longos e negros e rodopiava frente ao fogo, até perder o fôlego e o anel em tua mão resplandecia, ah, eu não sei, não sei, apenas fecho meus olhos, espero que um dia faça sentido, que nada se perca, me agarro a isso em certas noites como essa em que perambulo, muda e desconhecida de mim mesma, aterrorizada por ver que estamos todos morrendo, todos nós, sem darmos conta, sem nos debatermos, sem arriscarmos o que importa por algum pouco, algum resto de sublime que teima em sobreviver a nossa covardia, ao medo. E quando te vejo, no reflexo do espelho do quarto, beijo delirantemente tantas vezes a boca que imagino, queimo a pele em febres, teimo em repetir a frase daquele livro para teu fantasma que me segue: que seja doce, que seja doce, que seja doce.

Talvez, talvez desta, babe.

terça-feira, agosto 24, 2004

Fábula

“Todo amor,
Todo amor dorme
Numa caixa, numa gaveta, numa sala escura
Que às vezes visito
Como hoje num sonho
Como Deneuve entre os pombos
A abençoar seus queridos.“
(Herbert Viana, Todo amor dorme)

É esta outra coisa que olho atrás do rosto que desejo, enquanto meu sangue coagula nas feridas que insisto em abrir. Em vão, poderíamos distribuir culpas e mágoas, discursos encharcados de rancor de como você me deixou, não consigo mais voltar ao mim que reconhecia, estou perdido e sozinho e otário nessa cidade laranja demais, mas seria inútil e tolo e. Faz quanto tempo que ajoelhado naquela igreja, invejei a glória, o sofrimento, o êxtase, a adoração, enfim, que invejei por querer sentir o Mistério e nele apenas encontrar sentido? Não, não sorria assim, acendendo esse cigarro, soltando a fumaça com pressa, não me peça para contar a minha nova vida de desperdícios e exageros e turvos, apenas isto, apenas este borrar os olhos de tinta, apenas esta experimentação de rato em laboratório, ah, não me faça perguntas que não consigo precisar utilidade além desta de ferir-te de morte.

Meu amor sem dúvida, de bicho fantástico, de lobisomen, corra enquanto ainda, ainda guardo minhas garras longe de teu pescoço, dentes afiados querendo o doce e quente que adivinho nestas veias, corra, corra, não, não me deixe, suporte estes sombrios de quem foi inventado no assombro de quando ainda havia escuridão na noite das cidades. Agora, tudo tão iluminado que cega, tateando, vou me ferindo nas pontas, nas lanças, nas extremidades pontiagudas desses corpos que em nada me lembram você. Guardo séculos e séculos de segredos e banalidades e crimes e vilezas, tanta morte, enquanto seus olhos me descobrem, desvendando espaços que entrego, ignorando a fatalidade ao desmascarar o fantástico em mim para encantar teu tédio.

Entre nós, então, paira este silêncio branco de revoada. Pássaros mortos ao beber a água envenenada do lago dos sonhos que tive. Espante o mau agouro, coma em banquete todo o alado que resiste em mim, para que não ouse o aniquilamento do Absoluto em cada verdade tornada cinza para que sopres na palma de tua mão. Ah, o ridículo de minha fala empolada, língua que se enrola, cobra armando bote, naja, cascavel, ah, seja cruel e justo e puro herói saído de romance antigo e arranque sem piedade a pele que troco na tentativa vã de transmutar-me em algo sagrado. Finja Arthur, Lancelot, a prata em tua mão cravada no meu peito de cão sinistro. Antes, apenas, antes, deixa que beije tua boca e uive de desejo, e depois, em golpe exato, de Brutus, Dalila, crave com a falta de piedade dos amantes, a espada em minha carne de lobo faminto.

Ou não, não, se recuse e sonhe outro feitiço que me liberte, desencante para que seja homem a te amar tranqüilo nesses dias de chuva, para que caminhe nas ruas sem temer pedra, ódio, perseguição, e possamos dormir nossos planos frágeis em paz. Porque a fera que em mim se debate, busca agoniadamente o afago de tua mão, mesmo que depois, para ela rosne e ameace ataque. Não, não tema a besta selvagem que dentro da carne se recusa a ter nome, invente um chamamento para que possa, enfim, descansar a tua porta.

sexta-feira, agosto 20, 2004

Volta pra Casa.

"Horses in my dreams
Like waves, like the sea
On the tracks of a train
Set myself free again
I have pulled myself clear...." (Horses in my dreams, PJ Harvey)
Como ondas de afastamento, levando cada vez mais longe, até que os rostos virem pontos, quase perdidos. Olha a mão espalmada no chão, as unhas longas, tenta ver os ossos dos dedos, as ligações dos músculos, o sangue, imagina a corrente chegando até o latejar da cabeça e sorri ao primeiro estranho que cumprimenta, sentando do outro lado da sala. Os nomes, esquece deles, apenas ouve, ouve, ouve até que as vozes se tornem um só barulho que se junta ao som de uma música qualquer. Um ruído a mais. Espera, outra vez a maré retorna, relaxa o corpo à medida que respira, quase sente a espuma bater em seu peito, lembra do cheiro do mar no Arpoador quando amanhece, mistura com o cheiro de um pescoço, lambe a boca, a memória de um beijo explode nos poros com uma força que deixa os olhos molhados. Uma nostalgia quase, uma vontade de voltar, mas sem saber onde, como poderia esse retorno, talvez o esperem, talvez ainda o esperem,. Olha a praça verde e um pouco decadente, tão bela, com seus postes antigos, quer contar que um dia foi cigano, percorreu mundos, que um dia foi celta, soube feitiços, que foi soldado, matou gente, mas nada disso importa agora, embora carregue o peso do Tempo dentro, reconhece.

Vejo a menina de vestido lilás dançar, ela ri e conta que não acredita que seu escritor favorito é também o meu, me empresta um livro, grava meus cds, mexe em meu cabelo, rodopia no meio da sala. Parece natural que o outro ofereça seu cachimbo, hash, ele diz, traz o rosto marcado, estamos todos ali, em uma noite de inverno na cidade felina. A cidade é uma gata, trocando de cor de acordo com a luz. Não conto que eles estão mortos, nós todos já estamos mortos, por isso tão urgente fazer alguma coisa, contar visões que passam despercebidas, amar com pressa e sofreguidão, mergulhar o mais fundo possível, para que esta morte não seja em vão. Mas não, não, quem está preparado para esta revelação, mesmo que óbvia? Engulo, com a bebida, o presente recebido ao chegar. É uma outra porta que abro, com fitas coloridas de cetim, a menina rodopia no meio da sala, os outros fingem conversas, as frases fragmentadas, incompletas como se brincassem, mas sei que não, que é assim mesmo, sem lógica, sem continuidade.

Deixa a cabeça inclinada para trás, fecha os olhos, sente a brisa da Guanabara em seu corpo, respira fundo o ar do mar, como se voltasse, pensa, como se voltasse, mas ainda sem chegar ao lugar marcado, será que ainda me esperam, será que ainda é possível, ri sozinho porque não conta o quê pensa aos outros, que acenam da areia. Pisa com pés descalços, uma espécie de arrepio percorre a pele ao contato com a areia, ao ver o rosa alaranjado do horizonte, cheiros do início do dia em suas narinas, um frescor misturado ao não dormido da noite. É como se também pudesse nascer de novo, sair um outro imaculado de dentro de si mesmo, se tornar mãe, pai e filho em um só, em uma ousadia de semi-deus, ter e ser Tudo, não temer mais a solidão absoluta da alma. Sabe que existe um limite, tênue, ir além seria renegar ao humano e são dentro dele.Olha os outros que o acompanham, estiveram ao seu lado durante toda a noite, mas tão distantes, como se fossem ilhas, pontos desconhecidos em um mapa.

A luz do sol se divide em milhares de raios, por entre as nuvens. O frio torna meu rosto pálido, mas não aceito o casaco que me oferecem, quero este gelar para que a carne acorde, reclame, estar vivo também é desconforto, mas não explico, apenas recuso a gentileza do estranho. A menina de vestido lilás é a única que conheço, ela e suas risadas, seus rodopios, guardo apenas seu nome, peço que nada a alcance, mesmo que saiba todos mortos, peço para que seja sempre menina rindo, dançando na areia. Poderia confessar que foi um súbito, não, não foi um repente, mas algo lento, preciso, de uma verdade inquestionável, sem arroubo nenhum, assim que entro no mar. Sigo, cada vez mais dentro, dentro, como se retornasse ao grande útero verde, á Mãe de mudez selvagem, quero gritar aos outros que acenam na praia, que está tudo bem, que não me sigam, mas meu rosto quase coberto pela água, o sal arranhando a garganta, ardendo, sem dor ou desespero, os pulmões reclamando por ar, espasmos dos músculos. Em lucidez serena, sinto o apagar do sentidos com uma luminosidade que não sei de onde, não entendo como, apenas aceito o absurdo e o sublime sem divisão qualquer, o clarão tão próximo, me envolvendo, me absorvendo, como se voltasse, como se voltasse, e sim, sim, eles me dizem sem palavra ou som, me acolhendo, depois de tanto, depois de tanto, sim, eles me esperavam.

quarta-feira, agosto 18, 2004

Imãs- da origem

"Never thought I'd get any higher
Never thought you'd fuck with my brain
Never thought all this could expire
Never thought you'd go break the chain
Me and you baby still flush all the pain away
So before I end my day
Remember: My sweet prince, you´re the one" (Placebo, My sweet Prince)
Naquele tempo, desafiar era fazer a corte. Andavam lado a lado nas ruas antigas, moleques e perfeitos. Em vão, ele tentava abrir a porta ao dizer no final do dia: vamos para casa. Moravam em bairros diferentes e inventavam pequenos dramas, um falava de solidão, o outro, de um pai que nunca protegeu. Sorriam, cúmplices, como se tivessem descoberto um segredo que, de tão óbvio, transformava todos os outros em idiotas completos. Ás vezes, se olhavam com os olhos cheios d´água: algumas certezas eram tristes. Não sabiam como disfarçar a vontade de estarem juntos e assim, eram constantemente flagrados, conversando baixo, com os rostos levemente rosados. Brilhavam, muitos achavam que ficavam mais bonitos até, mais bonitos do que já eram.

Foi o moreno, dos dois, que convidou primeiro. Para um show de rock, já que os dois trocavam cds, cantarolavam músicas e ele, moreno, costumava ás sextas, telefonar para tocar alguns solos de guitarra, coisa que fazia com certo esforço, apoiando o aparelho em seu pescoço. O outro, loiro, recusou, inventou pretextos e para esquecer a própria covardia, passou o final de semana, bebendo na Lapa, beijando umas bocas desconhecidas, gastando-se em uns corpos sem nome. O moreno fez o mesmo. Na segunda, desfiaram um rosário de histórias e ressacas, mas não pareciam felizes. Contavam quase se desculpando, quase pedindo, vamos tentar de novo, mas não sabiam como nem o quê deveriam tentar novamente. Decidiram que um dia, quem sabe, teriam coragem, pensavam na palavra Ousadia, como um aviso, um sinal.

Meses passaram. Meses de sábados e domingos perdidos. Ele, moreno contava das novas bandas que resolvera entrar depois que o loiro havia lhe dito para não desistir. Ele gostava do interesse que o outro tinha por sua música, pelo sonho que confidenciara. Mas não sabia o que dizer quando ele, loiro, lhe contava da vontade de ir embora, escrever sobre as coisas que via, coisas que passavam despercebidas, experimentar outro país. Não gostava da idéia de perdê-lo, de não ver seu rosto pela manhã ainda molhado do banho na academia de ginástica do lado do trabalho. Foi em um súbito desses que a gente não sabe porque fala, mas fala mesmo assim e depois lembra e balança a cabeça e pensa como pude?, que ele, moreno, ao ouvir o loiro repetir a vontade de mudar de cidade ou país, disparou: eu vou contigo. Os dois ficaram calados, por um momento, encostados ao lado da máquina de água no corredor, e por fim, o loiro sorriu e disse: eu queria mesmo que você viesse.

Não demorou muito depois desse dia, do dia em que confirmaram a fuga imaginária para qualquer lugar distante, que o loiro ligou para o moreno. Devia ser tarde porque o moreno estava dormindo, demorou a entender quem estava falando, quando percebeu, perguntou se ele estava sozinho. Sim, ele, loiro, estava e queria saber o que ele, moreno, estava pensando em fazer, afinal era sábado, todo mundo na rua, inclusive ele, que não saía muito. O moreno sorriu, perguntou onde ele estava, ao ouvir, disse apenas: estou passando aí. O loiro, em seu nervosismo comprou balas, chicletes, cigarros (não fumava). Quando o outro chegou, lembra de ter pensado como gostava do rosto do moreno, mais precisamente da curva do maxilar até o queixo e dos olhos de menino. O moreno lembra que ao vê-lo, em pé, sozinho, teve vontade de prometer nunca deixá-lo assim, esperando.

Foram a uma dessas festas modernas, em um lugar velho, onde as pessoas fingiam não estarem jogando quando na verdade estavam, fingiam que eram outras, que não sofriam e não tinham dúvida. Eles não se importavam, estavam juntos, riam, esbarrando um no corpo do outro enquanto dançavam. Foi o moreno que quis comprar cerveja e assim, em um outro andar, a céu aberto, beberam. Passado um tempo, o loiro debruçou na bancada e olhando para os edifícios todos, disse ter saudade de uma janela que ainda não abrira. O moreno lembra de ter sentido a mesma vontade de nunca deixá-lo sozinho, e olhando o cabelo dourado, não se conteve, passando de leve a mão por entre os fios claros. O loiro lembra de ter virado levemente o rosto e sentido o calor da proximidade do outro, as bocas tão próximas, tão próximas...... beijaram-se.

É um emaranhado sem ordem certa, esta noite, um turvar quente, esta noite, onde os dois esqueceram de seus sobrenomes e histórias e signos que não combinavam. Tocavam-se com a fome de meses de espera, olhavam-se com a intimidade absurda que quem se diz: é isso, essa é a perfeição possível dentro de um mundo avesso. Ele, moreno, apertava seu corpo contra o corpo alvo, enquanto o outro mordia seu pescoço e agarrava as barras de ferro da escada. Nada diziam, nada. No silêncio em que se entendiam, nenhuma palavra se fazia necessária. Não perceberam que amanhecia, apenas quando um segurança informou que deviam se retirar, o local estava fechando. Eles se entreolharam, satisfeitos por não terem percebido nada além deles mesmos. Saíram de mãos dadas.

Demoraram-se horas na despedida, beijavam-se como se fosse proibido, como se fosse errado, como se amanhecer fosse uma ameaça ao que experimentaram, ao que agora sabiam. Ele, loiro lembra de ter ficado triste ao pensar que talvez o outro ficasse inseguro, afinal eram tão novos, se conheciam faz pouco, percebeu que o amava desde a primeira vez que o vira, quando ele, moreno, lhe dera um nome falso, desde daquele dia e agora?, pensava enquanto percebia como ficavam lindas, as peles juntas, suadas. O moreno lembra de ter prometido ligar, embora não quisesse ligar, não quisesse deixá-lo, lembra que disse algo sobre fugir, sobre seqüestro e que riram desse desespero apaixonado.

Era meio-dia., eles lembram. Ele, loiro, saiu do carro, acenou perto do portão e pensou que talvez não fosse mesmo pra fazer qualquer sentido, amor, vida, essas coisas. Ele, moreno, sorriu ao aceno do outro e pensou que nunca reparara em como o outro era belo, assim, naturalmente, com o rosto de quem ainda não dormira, sem máscara: era a menina mais bonita que amara.

Dormiram, exaustos, em suas casas. Quando acordaram, tiveram medo. Ele, loiro pediu demissão no mês seguinte, alegando estar cansado. Ele, moreno, foi transferido para outro departamento. Nunca comentaram daquele dia. Loiro nunca viajou a lugar nenhum, o moreno parou de tocar. Ambos casaram, tiveram filhos. E viveram infelizes para sempre.

terça-feira, agosto 17, 2004

Sacre Coeur

"Deus é mais belo que eu.
E não é jovem.
Isto sim, é consolo."
(Adélia Prado, Parâmetro)

Igreja. Entra e fica assim, absorta, cheirando o antigo, tentando desvendar um enigma sem nem mesmo pensar o motivo de querer um, vontade de mistério apenas, talvez seja. Evita as pessoas no caminho, olhando para longe, um atrás delas, pessoas, estranho, como se não visse mesmo ninguém, mas quem interessa hoje? Entra, senta na cadeira de madeira quase negra, no enorme salão mal iluminado, não se persigna, não se atreve, aumenta o volume da música no ouvido, que fala da idade do céu, é assim mesmo que quer, distante e antigo, esse momento. Procura as velas acesas, repara os entalhes nas paredes, o rosto esculpido em dor eterna, sente uma pena enorme dos santos, uma inveja também, eles parecem saber ou sentir tão nitidamente a presença deste Algo Maior, santos têm dúvida? Pára de questionar santos, acha bobo, quase sorri, apenas balança a cabeça. Deixa que o cabelo cubra o rosto, fecha os olhos um pouco, quer adivinhar séculos e séculos de preces e pedidos e súplicas, mas depois desiste.

Começa a cair, sente-se caindo, dentro do Grande Silêncio de si mesma. Sente, então, a Falta, a Ausência, quase insuportável, de alguma coisa, de alguém, de várias coisas e alguéns talvez, como o nome daquela peça, como o que ele quis dizer antes de ir embora e não disse, nesse oco, nesse vago dentro do peito ou da alma (mas não quer pensar nela, alma, não agora). Suporta a dor de perceber-se, no calado, na penumbra, cercada por imagens, idéias de redenção-martírio-sacrifício, sobre um Amor Maior, que lhe parece tão escuro, tão sombrio. Fecha o casaco, sente um frio súbito quando pensa que talvez seja mesmo isso, amor-renúncia-êxtase, uma solidão única de amar o incompreensível, o incomum. E suspeita, descendo os degraus de pedra cinza, que amar gente não é diferente.

segunda-feira, agosto 16, 2004

InFeRnaL

"Para poder morrer
Guardo insultos e agulhas
Entre as sedas do luto."
(Hilda Hist, trecho)

Escuta a irritação crescente, como se novecentos pares de pés se aproximassem do centro de uma praça imaginária. Apenas o som desses passos é suficiente para que se saiba da iminência do desastre. Os músculos do rosto imitam pedra, chumbo, concreto: imóveis, precisos, sem dúvida. A cor da inquietação é mistura de vermelhos, vinhos, violetas. Estado de expectativa que lateja nas têmporas. Não importa que de súbito toda a poesia possível do mundo se apresente (outro blefe e corto tuas tranças), não interessa a confissão de um amor perdido: novecentos pares de pés atingem o centro geográfico desta praça sem nome. Gritam as vozes perdidas no ar, é todo o vento uma ameaça de punhos invisíveis.

É preciso não deixar rastro algum na poeira branca do espelho, dentro, dentro, dentro, matam as Alices todas de um país que desconheço. Não é tarde, não é cedo, abolidas as horas, inventado um tempo onde todos os sacrifícios possíveis, como desejos sussurrados de dor gratuita. Uma razão de estar vivo é ter a pele em êxtase, agonia ou gozo. É preciso abandonar-se, tragar os amores doces, enjoativos, descartáveis, libertar o dragão para seu último sopro e perder a inocência. O Manter-se limpo para amanhãs clarividentes se torna desnecessário. Morte purifica, quem te disse? Onde as palavras se escondem nas curvas da madeira escura do meu peito? Não existe, não existe, não existe, nega a maior verdade três vezes, arranca uma por uma as penas dessas fantasias brancas de infância, antes do assombro das descobertas rubras da carne, antes dos nomes inventados para a Sombra.

Caminha insolente até o centro da praça, deixa que saqueiem o relicário dos sonhos bestinhas guardados, sonhos estes de uma ternura idiota que não comove O que não se vê. O desconhecido sopra as entranhas como se a poeira do Tempo acumulasse dentro. De pé, sem descanso, sem abrigo, o sol desta fúria queimando, ardendo como se fosse ódio mesmo e não tivesse outro nome, que se perdeu e que foge como se o inominável se furtasse de ter presença. Continua, imóvel, fingido cego, a lucidez culpada deste dom de ver, Ver o que se perdeu, o que retorna transmutado, um grito secular de horror por esta volta não percebida da própria história. Os heróis voltam seus altivos espectros na direção deste número, mas nada relatam: assistem apenas.

Rasga e deixa, abertas as chagas do tecido. Não importam os alheios do pensar do Outro que não estende bandeira, não acolhe, não perdoa e mesmo assim, beija a boca cansada de silêncios e amarga? Rasga e deixa, as confissões nuas não emocionam mais. Cal, cal, cal, para embotar a memória dos sentidos, para espantar o cheiro dos mortos. O salto no nada feito alvura. Exaure assim os nervos, destrói as lembranças todas, mastiga os músculos rijos, maldita, maldita, maldita...

terça-feira, agosto 10, 2004

Pequeno Blues do Desterro

"Night and day, I dream of
Making love to you now baby
Love making on screen
Impossible dream
And I have seen
The sunrise over the river
The freeway reminding of
This mess we're in"
(Thom Yorke and PJ Harvey, This mess we´re in)


Aparece no meio da noite. Não me incomoda a sua aparência cansada, as marcas nos dedos. Não tenho cinzeiros e os copos estão limpos dentro do armário: bebo no gargalo, limpo o que escorre da boca com a palma da mão. Tenta ajeitar o meu cabelo curto, toca o meu pescoço como teclas de um piano. Ele deveria ser músico, sorrio sem dentes quando penso e fecho os olhos, tentando adivinhar a melodia. Faz muito tempo, acho que ele diz, seria uma pergunta? Não respondo por preguiça, por vontade de irritá-lo, talvez.

Sinto seu olhar na marca lilás em meu ombro, depois, nos aranhões nos joelhos, e, finalmente, buscando meu olhar de confronto. Em vão. Tento adivinhar as horas pela escuridão do apartamento, pelo desânimo que sinto ao buscar o maço de cigarros em seu bolso. Esse movimento o assusta: ele ainda se espanta com a intimidade apesar de. Não irei além disso, prometi não colecionar giletes, quando penso, não me corto mais, tenho vontade de confessar, como um truque esperto aprendido. Mas não faria diferença contar nada agora que seu rosto se volta para os livros na estante torta da sala. Tiro minha blusa rasgada e jogo no canto da cozinha. Finge indiferença enquanto percebo suas mãos tremerem ao virarem as páginas do livro que segura. Pego a camisa estendida na cadeira e visto-a, mostrando ainda mais os ombros e a marca. Quando me aproximo, ele estende sua mão e seu braço enlaça minha cintura, pressionando meu corpo contra o dele. Respira forte em meu ouvido. Faz muito tempo, ele não pergunta.

O silêncio nas fotos, na pintura do quadro, na geladeira vazia, entre os anos inexplicáveis de viagens e amores descartáveis. As palavras recusadas entre nossas bocas. Descanso minha cabeça em seu ombro, olhando pra onde ainda deveríamos, mas não estamos. Suas mãos continuam em meu corpo como a refazer caminhos familiares. Ainda não faz qualquer sentido sua presença, como nunca fez. Mesmo assim, permito que me guie, como se talvez, talvez dessa, pudéssemos ter algum bom porto á nossa espera. É na sua boca, então, que o gosto do naufrágio se faz flagrante. Os antigos faróis abandonados.

terça-feira, agosto 03, 2004

Catarse das Cores Tintas

Cabeça dá voltas e voltas em torno daqueles olhos vermelhos. Penso em sorrir, passo minha mão por seus cabelos, esqueço depois que os outros aparecem e falam dessas coisas que não me interessam, nunca me interessam. Busco o maço em cima da mesa, pego um cigarro sem pedir licença, assim que a fumaça preenche este vazio de vontade, levanto-me com a desculpa de pegar mais bebida. Estou bêbado, mas não o suficiente para fingir que não sinto os tais, os olhos vermelhos.

Eles me acompanham pela sala, subo as escadas, sinto o calor em meu pescoço, continuam apesar do escuro da pista. Desafio os olhos, endureço meu rosto, elevo meu queixo, e toda essa suposta virilidade não impede a aproximação, eles em mim, vermelhos, tento me desvencilhar, tento pensar que amanhã acordo cedo, ligo para Afonso e combino de vermos a possibilidade de compra das terras, mas nada disso impede que os olhos em mim ardam, de maneira dolorosa. Cedendo, vou entregando os espaços que em mim não cederia sem debater-me, estes vagos onde ainda posso mentir para mim mesmo que amanhã tudo pode ser diferente se ao menos acordasse cedo, e ligasse, se ao menos existisse Afonso ou terras a serem compradas.

Ela aparece, suas mãos agora percorrem meu cabelo, pergunta o que tenho, mais uma, duas vezes, me vasculha com seus olhos brancos, tentando entender, quase odeio sua tentativa, esse esforço em compreender o que desconheço, talvez seja o amor que ela diz sentir, que a transforma nessa mulher irritantemente solícita, mas não respondo, apenas balanço a cabeça, deixo que me beije, um beijo que mascara a ignorância que sempre sentiremos em relação ao outro, percebo, mas isso não me apavora como os olhos vermelhos que parecem se divertir com o que penso, como se pudessem captar meu desalento, meu cansaço permanente. Espero que ela se afaste, volte ao andar de baixo, á mesa e suas conversas inúteis.

Os olhos se aproximam, em vão tento reconhecer rosto, corpo, cheiro: eles maiores que tudo, faróis rubros que nada iluminam, em mim como se apenas eu restasse, atento ou lúcido, o medo sendo embaçado pelo gole último no copo em minha mão. Vou cedendo, lentamente, sem retorno, sabendo que não poderei voltar a impor qualquer limite ao seu domínio. Como se fogo me percorresse as veias, como se mergulhasse em um mar de lava e reconstruísse minha carne, como se parisse de mim, este outro que nunca quis, que sempre busquei, que recusei tantas vezes. Como uma revelação mística, percebo-os agora, agoniado e sozinho, com uma renúncia que desconhecia possuir : os olhos vermelhos. Que são meus, pegados em mim para sempre, para sempre. Rubis incrustados em minha alma.

segunda-feira, agosto 02, 2004

Tiro

De tanto levar, frechada do teu olhar, meu peito até parece sabe o que???Táubua de tiro ao Álvaro, num tem mais onde furar(Adoniran Barbosa, na voz de Elis)

Começa, tanto faz quem pensou primeiro, começa, parece uma daquelas cenas longas, onde uma coisa toca a outra, uma coisa derruba a outra, que derruba uma terceira e assim por diante. Assim, começa, você pensa que alguém poderia premeditar, mas não se trata disso, aparenta ser um jogo, quando na verdade, não pode ser considerado assim, desse modo, você concluiria que, não faz sentido usar uma palavra encaixotada desse jeito para algo que se resume ao meu desespero ou minha fome ou apenas essa vontade de saber se ainda consigo sentir alguma coisa além do amargo .

Então, brindamos, brindamos todos, acendemos cigarros que servem apenas para mascarar nosso verdadeiro cheiro e machucar nossas gargantas e olho este rosto tão de perto que consigo ver os poros, mas vou me desconcentrando e apenas acompanho o ritmo da voz do estranho. Vou como que se estivesse perdido entre correntezas, como tentando apenas sobreviver a elas, não me debato apenas abandono meu corpo na cadência da maré, torcendo para que alcance alguma praia antes da exaustão completa. Falo alguma coisa, canto um trecho de canção, olhando e sorrindo, tão perto, que o estranho se surpreende, sorri, parece uma criança, parece ter carne macia, começo a pensar como uma fera há muito enjaulada e que, de súbito, escapa. Sei que o estranho tem um nome, sei que pergunto sua idade apenas para confirmar o que vejo nas poucas marcas ao redor dos olhos, a fera começa a salivar ao sentir a promessa de sangue fresco, meu corpo esquenta, presto atenção na dança cada vez mais certa, cada vez mais exata que se faz sem qualquer ensaio, me emociono sabendo da fugacidade, do brilho vagabundo desses instantes.

Seguro sua mão com força, ele parece inofensivo, indefeso, tenho quase pena, quase, mas não a ponto de parar, pensar melhor se devo ou não, não sou tão ridículo, tomo este estranho pela mão e ultrapasso a porta daquele quarto, sabendo que não é um quarto, mas finjo que sim, abro a cortina como se soubesse o que há por trás dela, mesmo que ignore o que há, o estranho acredita que sei porque não oferece qualquer resistência, apenas segue, apenas me dá a mão como se confiasse que guiarei seus passos com cuidado. Mas não é cuidado que me faz morder a boca do estranho, e colocar minhas mãos em seu rosto e olhá-lo com a crueza de uma fera que estuda a presa, que luta com ela, que espera que ela se debata e esquente o vinho quente das veias, é assim que seguro o rosto deste estranho, para guardar este desejo débil que sinto, esse prazer animal de subjugar. Engano-me, isto não é um jogo, não é um sacrifício, não é aparentemente nada que me faça acordar amanhã com alguma sensação redentora, não, somente um desafio lançado a mim mesmo, jogo de espelhos.

O estranho morde a boca quando aproximo meu rosto ao dele, sinto seu coração batendo mais rápido quando coloco minha mão de leve em seu peito. Minha vista turva quando ele obedientemente abre sua boca e recebe minha língua, seguro seus quadris com força, penso em humilhações, em sadismos, sinto náusea e isso me acende mais a vontade, páro este beijo que nada tem de romance, que apenas é demonstração de poder, sei que ele não oferece resistência ao meu comando, mordo seu queixo, seu pescoço, penso em leões devorando gazelas, em crocodilos e suas mandíbulas, nas fileiras de dentes dos tubarões, meu gozo é este, é o gozo do mais forte. É assim que o afasto depois que me satisfaço, vejo-o fechar a braguilha da calça jeans e me olhar como quem tenta entender e não consegue, como quem precisa dizer algo e não encontra palavra.

Anoto o número do telefone em um guardanapo com minha letra limpa, estendo ao estranho como uma bandeira perigosamente branca, que ele aceita como parte do ritual. Não me importo como voltará para casa, não me interessa que tenha uma casa, mãe, um cachorro, pergunto sua idade por parecer muito tarde apenas, amanhece, sinto um gasto em mim que me desanima de continuar qualquer conversa. Despeço-me, confiro os trocados nos bolsos e ando para casa com a cabeça ainda confusa de álcool e desejo. Ainda estou vivo, tanto faz.

Fênix Negra

é assim que a gente começa. ou recomeça. tanto faz, não vamos discutir isso agora. embora seja bom o momento. pra discutir, disse. pode ser um diário ou não, não foi pra isso que refiz o caminho, mapa melhor é emotivo e mesmo assim tem suas encruzilhadas, seus pontos fantasmas. códigos bobos, olhos limpos. este tal olhar de através tem explicação. escrevo, com a proteção da Fênix Negra, referência de quadrinhos e nem tão nerd assim. é a tal que vive o que a outra não tinha coragem ou apenas uma volta completa em um universo paralelo. mas é aqui, o tal lugar, onde talvez houvesse uma saída. Pássara dizia que parecia deixar rastros. pois é, deixa. como eu. então, é assim, disse. que a gente recomeça.