"Que seja doce."(CFA)

sexta-feira, agosto 27, 2004

Anotações sob um amor urbano, parte II


“É para você que escrevo, hipócrita, para você.” (Ana C.)

A cidade em sua eterna cor laranja mesmo quando anoitece. Você insiste em seus jogos de palavras, duelos e cortes verbais madrugada adentro, rituais particulares de abandono e ciúme, anoto o número na madeira do meu peito e certas noites, prometo talhar um novo código para esta porta que insiste em abrir sozinha, fantasmagórica, ao ouvir sua voz. Não, não estamos doentes, nem a cidade, nada, nada está podre nestas noites embora matem, trucidem, matem, assassinem e espanquem o homem bicho de Bandeira nas praças de uma cidade cinza, agreste em sua rotina de tornar a carne em concreto e vidro. Acordo, penso no sangue, no vermelho tornado lago, abundante fonte de maldições e gemidos, sonho com dragões disfarçados, santidades que te fazem rir, converso com a Sombra em pele de cão e debatemos o futuro que não teremos. Acordo, meninos dormem nos esgotos, perto das dunas de um barato que não existe mais, enquanto outros meninos quebram garrafas e capotam seus carros, não, a cidade não está morta, nós, nós estamos morrendo, jovens e perdidos, embora você não sinta pena, nem se compadeça, certas noites, acordo e não consigo dormir pensando na dor apenas, nessa Dor intocável de estar vivo. Quero confessar que nunca sei, nunca soube e assim mesmo acredito e sigo, cego e tosco e sem direção precisa, esperando que você insista, que não se acovarde e também siga. Onde, ainda não sei, não sabemos.

Quando te vi, a primeira vez, meus pés queriam estar descalços, tive vergonha da versão que apresentava bêbada, confusa, com medo. Quis encenar alguém certo & seguro & esperto em sua andança, mas não conseguia me equilibrar decentemente, esbarrava nos cigarros que você insistia em acender, andando ao meu lado, pela rua suja. E senti alívio ao tocar teu ombro, ao tocar teu braço, cogitava se poderíamos ser reais & sinceros & estranhamente puros apesar de todos os esquemas e pecados que cometíamos em nome de um desespero, de um pavor sem nome, sem definição. Saltei dentro deste escuro onde nos encarávamos, onde você me dizia haver um quarto prometido para que escapássemos, esticava minha mão e tocava teus dedos longos e sabia então que poderia ser possível, poderia, poderia, repetia como uma prece avessa, tão contrita, tão séria, você distraído em sua suposta timidez, agoniado também, onde poderíamos, onde iríamos depois de todas as palavras e confissões e risos? Foi assim, com este misto de tons e cores, que minha boca exausta beijou a sua, na esquina mal iluminada, de uma rua antiga, pedia para que você não fugisse, perdoasse a ousadia de apaixonar-me, de nos apaixonarmos, saltarmos sem rede, sem plano B, sem nada, de maneira fatal e agoniada, e nenhuma dúvida. Kamikases & crianças & febris, nunca soubemos outra medida que não fosse o exagero de querer e pedir e sentir tudo, tu-do, corpo reconhecendo gosto, cheiro, redescobertas que não suspeitávamos, mas que ainda assim temíamos. Lembro do teu rosto assombrado atrás das janelas de madeira, o silencioso espanto de uma volta inesperada para uma casa que não fazíamos idéia.

Você queria Londres, eu sonhava com a areia do Egito, cobrindo a tudo, o sol amarelo, absurdamente amarelo tornando morena a minha pele, e meus olhos mais claros, queria ser tuareg, contar as miragens, os oásis, enquanto você queria o fog, a chuva, a violência estrangeira nos julgando. Não, você queria estar só naquele frio úmido, mandar postais cantando a saudade e amor guardado, fingia não ouvir, queria entender, não sabia como sei hoje, o tempo é senhor cretino e sábio, sonhos são matéria de desastre em gente que não tem as rédeas dos sentidos. Não penso em gritar verdades em teu ouvido, calo declarações azuís, observo as pegadas na lama da rua, o meu jeito bandoleiro de experimentar venenos, você teme que um dia não retorne desse teatro que vezenquando faço, minha torre encenada, que talvez proteja essa outra que um dia te disse não, não espero mais.

Mas não estamos mortos, a cidade laranja resiste, ainda, ainda não, ainda aguardamos o desfecho , a trombeta do anjo, embora você finja ceticismos de menino lido e estudado, guardo por dois, o sagrado, minhas visões do cadafalso. Mesmo que você retorne, um dia, e me pergunte de onde, onde, como, qual meu primeiro nome quando os cabelos longos e negros e rodopiava frente ao fogo, até perder o fôlego e o anel em tua mão resplandecia, ah, eu não sei, não sei, apenas fecho meus olhos, espero que um dia faça sentido, que nada se perca, me agarro a isso em certas noites como essa em que perambulo, muda e desconhecida de mim mesma, aterrorizada por ver que estamos todos morrendo, todos nós, sem darmos conta, sem nos debatermos, sem arriscarmos o que importa por algum pouco, algum resto de sublime que teima em sobreviver a nossa covardia, ao medo. E quando te vejo, no reflexo do espelho do quarto, beijo delirantemente tantas vezes a boca que imagino, queimo a pele em febres, teimo em repetir a frase daquele livro para teu fantasma que me segue: que seja doce, que seja doce, que seja doce.

Talvez, talvez desta, babe.