"Que seja doce."(CFA)

terça-feira, agosto 10, 2004

Pequeno Blues do Desterro

"Night and day, I dream of
Making love to you now baby
Love making on screen
Impossible dream
And I have seen
The sunrise over the river
The freeway reminding of
This mess we're in"
(Thom Yorke and PJ Harvey, This mess we´re in)


Aparece no meio da noite. Não me incomoda a sua aparência cansada, as marcas nos dedos. Não tenho cinzeiros e os copos estão limpos dentro do armário: bebo no gargalo, limpo o que escorre da boca com a palma da mão. Tenta ajeitar o meu cabelo curto, toca o meu pescoço como teclas de um piano. Ele deveria ser músico, sorrio sem dentes quando penso e fecho os olhos, tentando adivinhar a melodia. Faz muito tempo, acho que ele diz, seria uma pergunta? Não respondo por preguiça, por vontade de irritá-lo, talvez.

Sinto seu olhar na marca lilás em meu ombro, depois, nos aranhões nos joelhos, e, finalmente, buscando meu olhar de confronto. Em vão. Tento adivinhar as horas pela escuridão do apartamento, pelo desânimo que sinto ao buscar o maço de cigarros em seu bolso. Esse movimento o assusta: ele ainda se espanta com a intimidade apesar de. Não irei além disso, prometi não colecionar giletes, quando penso, não me corto mais, tenho vontade de confessar, como um truque esperto aprendido. Mas não faria diferença contar nada agora que seu rosto se volta para os livros na estante torta da sala. Tiro minha blusa rasgada e jogo no canto da cozinha. Finge indiferença enquanto percebo suas mãos tremerem ao virarem as páginas do livro que segura. Pego a camisa estendida na cadeira e visto-a, mostrando ainda mais os ombros e a marca. Quando me aproximo, ele estende sua mão e seu braço enlaça minha cintura, pressionando meu corpo contra o dele. Respira forte em meu ouvido. Faz muito tempo, ele não pergunta.

O silêncio nas fotos, na pintura do quadro, na geladeira vazia, entre os anos inexplicáveis de viagens e amores descartáveis. As palavras recusadas entre nossas bocas. Descanso minha cabeça em seu ombro, olhando pra onde ainda deveríamos, mas não estamos. Suas mãos continuam em meu corpo como a refazer caminhos familiares. Ainda não faz qualquer sentido sua presença, como nunca fez. Mesmo assim, permito que me guie, como se talvez, talvez dessa, pudéssemos ter algum bom porto á nossa espera. É na sua boca, então, que o gosto do naufrágio se faz flagrante. Os antigos faróis abandonados.