"Que seja doce."(CFA)

terça-feira, agosto 24, 2004

Fábula

“Todo amor,
Todo amor dorme
Numa caixa, numa gaveta, numa sala escura
Que às vezes visito
Como hoje num sonho
Como Deneuve entre os pombos
A abençoar seus queridos.“
(Herbert Viana, Todo amor dorme)

É esta outra coisa que olho atrás do rosto que desejo, enquanto meu sangue coagula nas feridas que insisto em abrir. Em vão, poderíamos distribuir culpas e mágoas, discursos encharcados de rancor de como você me deixou, não consigo mais voltar ao mim que reconhecia, estou perdido e sozinho e otário nessa cidade laranja demais, mas seria inútil e tolo e. Faz quanto tempo que ajoelhado naquela igreja, invejei a glória, o sofrimento, o êxtase, a adoração, enfim, que invejei por querer sentir o Mistério e nele apenas encontrar sentido? Não, não sorria assim, acendendo esse cigarro, soltando a fumaça com pressa, não me peça para contar a minha nova vida de desperdícios e exageros e turvos, apenas isto, apenas este borrar os olhos de tinta, apenas esta experimentação de rato em laboratório, ah, não me faça perguntas que não consigo precisar utilidade além desta de ferir-te de morte.

Meu amor sem dúvida, de bicho fantástico, de lobisomen, corra enquanto ainda, ainda guardo minhas garras longe de teu pescoço, dentes afiados querendo o doce e quente que adivinho nestas veias, corra, corra, não, não me deixe, suporte estes sombrios de quem foi inventado no assombro de quando ainda havia escuridão na noite das cidades. Agora, tudo tão iluminado que cega, tateando, vou me ferindo nas pontas, nas lanças, nas extremidades pontiagudas desses corpos que em nada me lembram você. Guardo séculos e séculos de segredos e banalidades e crimes e vilezas, tanta morte, enquanto seus olhos me descobrem, desvendando espaços que entrego, ignorando a fatalidade ao desmascarar o fantástico em mim para encantar teu tédio.

Entre nós, então, paira este silêncio branco de revoada. Pássaros mortos ao beber a água envenenada do lago dos sonhos que tive. Espante o mau agouro, coma em banquete todo o alado que resiste em mim, para que não ouse o aniquilamento do Absoluto em cada verdade tornada cinza para que sopres na palma de tua mão. Ah, o ridículo de minha fala empolada, língua que se enrola, cobra armando bote, naja, cascavel, ah, seja cruel e justo e puro herói saído de romance antigo e arranque sem piedade a pele que troco na tentativa vã de transmutar-me em algo sagrado. Finja Arthur, Lancelot, a prata em tua mão cravada no meu peito de cão sinistro. Antes, apenas, antes, deixa que beije tua boca e uive de desejo, e depois, em golpe exato, de Brutus, Dalila, crave com a falta de piedade dos amantes, a espada em minha carne de lobo faminto.

Ou não, não, se recuse e sonhe outro feitiço que me liberte, desencante para que seja homem a te amar tranqüilo nesses dias de chuva, para que caminhe nas ruas sem temer pedra, ódio, perseguição, e possamos dormir nossos planos frágeis em paz. Porque a fera que em mim se debate, busca agoniadamente o afago de tua mão, mesmo que depois, para ela rosne e ameace ataque. Não, não tema a besta selvagem que dentro da carne se recusa a ter nome, invente um chamamento para que possa, enfim, descansar a tua porta.