"Que seja doce."(CFA)

segunda-feira, agosto 16, 2004

InFeRnaL

"Para poder morrer
Guardo insultos e agulhas
Entre as sedas do luto."
(Hilda Hist, trecho)

Escuta a irritação crescente, como se novecentos pares de pés se aproximassem do centro de uma praça imaginária. Apenas o som desses passos é suficiente para que se saiba da iminência do desastre. Os músculos do rosto imitam pedra, chumbo, concreto: imóveis, precisos, sem dúvida. A cor da inquietação é mistura de vermelhos, vinhos, violetas. Estado de expectativa que lateja nas têmporas. Não importa que de súbito toda a poesia possível do mundo se apresente (outro blefe e corto tuas tranças), não interessa a confissão de um amor perdido: novecentos pares de pés atingem o centro geográfico desta praça sem nome. Gritam as vozes perdidas no ar, é todo o vento uma ameaça de punhos invisíveis.

É preciso não deixar rastro algum na poeira branca do espelho, dentro, dentro, dentro, matam as Alices todas de um país que desconheço. Não é tarde, não é cedo, abolidas as horas, inventado um tempo onde todos os sacrifícios possíveis, como desejos sussurrados de dor gratuita. Uma razão de estar vivo é ter a pele em êxtase, agonia ou gozo. É preciso abandonar-se, tragar os amores doces, enjoativos, descartáveis, libertar o dragão para seu último sopro e perder a inocência. O Manter-se limpo para amanhãs clarividentes se torna desnecessário. Morte purifica, quem te disse? Onde as palavras se escondem nas curvas da madeira escura do meu peito? Não existe, não existe, não existe, nega a maior verdade três vezes, arranca uma por uma as penas dessas fantasias brancas de infância, antes do assombro das descobertas rubras da carne, antes dos nomes inventados para a Sombra.

Caminha insolente até o centro da praça, deixa que saqueiem o relicário dos sonhos bestinhas guardados, sonhos estes de uma ternura idiota que não comove O que não se vê. O desconhecido sopra as entranhas como se a poeira do Tempo acumulasse dentro. De pé, sem descanso, sem abrigo, o sol desta fúria queimando, ardendo como se fosse ódio mesmo e não tivesse outro nome, que se perdeu e que foge como se o inominável se furtasse de ter presença. Continua, imóvel, fingido cego, a lucidez culpada deste dom de ver, Ver o que se perdeu, o que retorna transmutado, um grito secular de horror por esta volta não percebida da própria história. Os heróis voltam seus altivos espectros na direção deste número, mas nada relatam: assistem apenas.

Rasga e deixa, abertas as chagas do tecido. Não importam os alheios do pensar do Outro que não estende bandeira, não acolhe, não perdoa e mesmo assim, beija a boca cansada de silêncios e amarga? Rasga e deixa, as confissões nuas não emocionam mais. Cal, cal, cal, para embotar a memória dos sentidos, para espantar o cheiro dos mortos. O salto no nada feito alvura. Exaure assim os nervos, destrói as lembranças todas, mastiga os músculos rijos, maldita, maldita, maldita...