"Que seja doce."(CFA)

terça-feira, agosto 31, 2004

Lembranças acesas

“A noite acabou, talvez tenhamos que fugir sem você
Mas não, não vá agora, quero honras e promessas
Lembranças e histórias
Somos pássaro novo longe do ninho

Eu sei...” (Eu sei, Legião Urbana)

Cabelo grande, calça rasgada, desenha lápides no caderno, empresta o vinil, ouça alto, diz. Caminha comigo pela cidade, somos jovens, acho que somos velhos, sérios e muito graves para a idade que temos, nem quinze, minh amãe quer valsa, não digo, aceito ir pra Índia, o pai não deixa, diz que não vou a lugar nenhum se não quero Londres, não, não quero Big Ben, quero areia do Egito, pode ser? Rabisco letras de música na página branca, na biblioteca, lemos Christiane F escondido, olhamo-nos e sorrimos, nos entendemos assim, no limite do calado de cada um. Um dia vou embora, penso, mas não digo, despedidas não, ainda não. Subimos a ladeira, onde as meninas não sabem se gostam ou não do menino com fama de rebelde, expulso de colégio, que fuma e bebe cerveja. Quantos irmãos ele tem?, nunca pergunto, sei que o pai, ele discute muito e tal. A mãe é o ponto fraco, sei pela voz que muda, fica doce, quando conta. Passo a mão por seu cabelo negro, abraço e digo que alguém precisa de abraço vez em quando, quem? ainda não sei, ele ri, encostamos um no outro, apoiados, e assim ficamos, tempo não contado no relógio. Queremos rock pesado no último volume, usamos preto, quero uma tatuagem de naja na perna, mãe não deixa, permite um beija-flor, quero caveira, sem acordos, concessões, ah, você não se compadece ao visitar o teu eu mais verde? Agora, quem olho nesse retrato, lembrança, memória causa uma ternura como se fosse outro desapegado de mim.

Quanto tempo, quem sentiu primeiro, nunca foi se despedir, nunca disse nada, você também sentiu? É , eu também, lembra da vez, daquela vez, ilumina a minha vida, na frente de todo mundo, vela na mão, um rapaz tímido, sempre, fama besta, falar assim, eu quase chorando, não diga mais nada, me abraça, eu também, todo mundo olhando, deixa pra lá, todo mundo quieto, boquiaberto, esquece dos outros, não me importa, ilumina, eu vou embora, sei disso, fala nada, só abraça, ilumina a minha vida.

Maio, abril, tanto faz, 2001, olha do sétimo andar na varanda, vê o mar, chora muito, na televisão ligada uma banda qualquer, o vocalista lembra tanto, dói de um jeito, tudo intensamente, espancando os sentidos, noites sem dormir, um corpo na cama que não importa o nome, os copos sujos de bebida, o cinzeiro cheio, senta na bancada, o vento, o vento, tudo , você não sabe, tu-do, latejando, contorcendo, todos os nomes, rostos, possibilidades, retrocedem, você não sabe, eu não sou daqui, marinheiro só, eu não tenho amor, amor, amor, mancada, besteira, não acredito mais, não sinto, nunca senti, mentira, alguém mentiu? Falseou?prometeu?, conversa fiada, sério, abuso de fraqueza, agora, assim, quebraram minha asa, caí sozinho, aqui dentro, fraturas tantas que me assustam, quero fim, fim, fim, dane-se séculos de escuridão no inferno, não me importo, porra, não me importo, fantasmas são lúcidos?, eu não sei, só quero um pouco desse alívio que não encontro, o barulho da tevê ligada, olho, um relance, penso, aquele menino, cabelos e olhos de uma escuridão possível de sonhos calmos, aquele, não, não é ele, mas lembra, lembra, lembra, é possível, amor, amor, amor de criança é isso, ilumina minha vida, só mais um dia, resisto só mais um dia, nem que seja pra te dizer que naquela varanda, não voei noite adentro porque lembrei e você estava lá, menino ainda, bonito, com uma vela barata na mão, dizendo ilumina minha vida.