"Que seja doce."(CFA)

sábado, outubro 30, 2004

London Calling

(trecho de um conto que estou escrevendo de mesmo nome)

Estou com sede. Faz um sol obsceno lá fora. Finjo que acordei cedo para não dar sossego ao corpo. Faço as coisas que escrevi na lista ás seis da tarde de ontem. Bebo litros de água e escrevo frases soltas. Estou quieto e repito sempre ahn?, quando perguntam algo.

Você sabe que estou falando com você mesmo quando não estou falando com você? Os meus dedos enrolando seu cabelo ontem de noite e eu inventando outro nome para isso que a gente faz quando não tem muito sentido. A cidade amanheceu vazia enquanto descia a rua, reclamando do abandono das coisas em volta: me perturba o ponto em que chegamos. Escuto o que você me diz como se importasse, mas apenas reparo no contorno do seu rosto e como seria fácil risca-lo no papel.

- Eu queria ter um pedaço de carvão agora
- ?
- Eu queria um pedaço de carvão e papel. Seria fácil riscar daqui até aqui- digo isso tocando seu rosto.

Você sorri e seu sorriso é igual ao de todo mundo. Sinto um estranho alívio ao pensar isso: você é igual a todo mundo. As mentiras começam quando achamos que podemos tudo diferente, permanecendo os mesmos. Talvez você ficasse triste se soubesse que estou pensando assim, você demora a entender porque pensa que me conhece muito bem. Sou eu que iludo, sou eu que invento esse personagem de fácil convivência e de doçura incontestável.

Você gosta de mim porque danço engraçado. Tocava Clash e eu vestia uma camisa dos Ramones preta com jeans velho, calçava minha bota gasta e sorria, balançando a cabeça. Sorria porque não sabia a letra e mesmo que soubesse, não queria cantá-la: apenas sacudia a cabeça, batia meus pés no chão, mãos fechadas pra trás. Você ficou olhando pra mim, sozinha no canto, sorrindo, cabelos soltos, durante um tempo que não sei precisar. Quando a música acabou, caminhei para o bar e lá, encostado do meu lado, você perguntou se gostava de punk.

- Eu não sei.
- Quê?
- O quê você perguntou: eu não sei se gosto de punk.
- Mas você dança como se gostasse.
- Eu sei, mas gosto da música que estava tocando, daí a gostar de punk....
- Entendi.

Acho que você não gostou do que respondi. Mas não se afastou, continuou ali, sacudindo a cabeça, vendo as pessoas em volta. Gosto disso: ver as pessoas quando elas não imaginam que estão sendo vistas ou não se importam. Não sei se você está vendo o mesmo: há muito tempo atrás, pensei que pudéssemos ver a mesma coisa, repartir a mesma miragem. Depois percebi que não, não podemos, as minhas janelas dão para outro lugar. Companhia para ver o fim do mundo, essa casa que busco, talvez não seja bem o que os outros imaginam como ideal: assumo que minha natureza tem muito desse passadismo. Como o diálogo entre a as agentes do céu e do inferno, naquele filme espanhol:

- Lola, bondade não torna uma mulher interessante. Não é muito sexy.
- Mas é chic, e isso anda faltando no mundo.

Você pára e olha para mim, toca o meu cabelo, gosto de sentir as suas mãos na minha cabeça, me sinto um gato, cachorro, periquito, um bicho desses, com os meus olhos fechados, quero ronronar para que você saiba que está tudo bem, que é bom, mas não faço nada. Quando sinto sua boca na minha, assim, devagar, é como se algo morno me cobrisse, como se afundasse em uma banheira de leite quente. Você me beija sem pressa, enquanto encosta seu corpo no meu, cada vez mais. Imagino qual seria o peso do seu corpo sobre o meu, como é sua pele embaixo da camisa, qual o gosto do seu suor. Não sei o que você está pensando, não quero saber: não faria nenhuma diferença para o meu desejo, talvez você imagine outra garota, talvez.

Você segura a minha mão com força, sem machucar. Olha por alguns instantes, dentro dos meus olhos, começo a me sentir um pouco zonza, você suspira e sorri mais uma vez. Abre caminho até a porta, não nos falamos mais nada. Não sei se confio em você quando me diz que não esperava me encontrar ali, mas penso em que consiste esta tal confiança que por vezes insistimos em sentir. Sei que você pode confiar em mim porque me conheço e talvez meu excesso de lealdade me cause mais desastres que qualquer outra coisa. Mas eu seguro sua mão com força e com a outra, seguro seu ombro, protegendo meu rosto da luz da rua.

Não me assusto quando percebo que estamos em seu quarto, nem reparo na decoração do apartamento. Está escuro ainda porque suas cortinas estão fechadas. Você sai e volta com uma garrafa de água e um copo apenas: um detalhe que me faz gostar de estar sentada na beira da sua cama. Estranhos que sentem sede e dividem o mesmo copo de água. Imagino nossos novos nomes nesse filme que invento e passa no teto do seu quarto de dormir. Você gosta de mim porque, ás vezes, fico muito calada e pareço distante. A minha sensação ponto solto, de incomunicabilidade, te atrai: nunca imaginei que minha solidão pudesse ser interessante, talvez você seja esquisito demais. Quero provar de você como se pudesse esticar a mão e pegar esta fruta e mordê-la: como se você crescesse em uma árvore e pudesse te colher ás cinco horas da manhã. Estou com fome e me alimento de você, agora que penso isso, talvez eu é que seja esquisita.

(......)

sexta-feira, outubro 29, 2004

Nina Simone knows best

Before Sunset (Ethan Hawke and Julie Delpy) Posted by Hello


"Celine: Baby, you´re gonna miss that plane...
Jesse: I know"

Como o primeiro, After Sunset, é doce que só (sem ser enjoado). Poucos filmes foram tão bacanas no Festival desse ano: Before Sunset faz companhia a The Dreamers (Os sonhadores, de Bertolucci), The Edukators, Code 46 e Nine Songs (estes dois últimos foram os únicos que me fizeram chorar na lista de 37 filmes vistos) como as melhores horas gastas na sala escura. Poucos também tiveram a reação apaixonada do público(como em Edukators, que teve seu final aplaudido com direito a urros). Com o fantasma de Nina Simone dando o toque mais que perfeito, o filme vale muitíssimo a pena.


quarta-feira, outubro 27, 2004

Doçura

Desisto de brincar disso, doçura. Não penso mais: acordo cedo todos os dias e alguém estranha meu sorriso ao comer maçãs. Olho pela janela e longe só consigo enxergar o Cristo. Escrevi um roteiro de cinema, um curta sendo longa sendo ó, céus, como você poderia estar certo, meu caro amigo (diria a ele, que está na cidade, pelo que ouvi falar). Estamos correndo demais, coloco a mão em seu joelho, da última vez, evitei tanto chegar que julguei estar perdida: não estava mentindo quando disse que a sua porta é como a porta de Alice, aquela história que insisto em comentar.

Não, doçura, não seja tão desleal ao brincar assim, não finjo mais ser essa de mãos longas serenamente postas em cima da mesa: instead, vou quebrando todos os palitinhos, olhando para você, fatal e séria, contar suas histórias. Derrama a bebida no meu copo e descreve uma viagem qualquer, vou fingir que nunca mudamos de lugar. Chego com meus olhos baixos, disfarçando intenção, peço uma dupla dose de gentilezas, lembro dela cantando e me fazendo prometer que não vai ser diferente, nunca vai ser diferente, mas não há nada a fazer quando de propósito fingimos que não dói, não, não dói.

Fazer o quê, doçura, não chore por um ou dois, nem três amores desfeitos, amor é uma planta que se encolhe ao toque, no meu peito, os vasos vazios prometendo uma visita que um dia, um dia, chega, mas por enquanto, só esta encenação profundamente melodramática. Fazer o quê com esta saudade do ainda não, que nos põe tão crédulos e loucos a acreditar em todas as falas polvilhando falso açúcar? Você me olha e esqueço que um dia quebrei a asa, suicida e nostálgica. Seguro o choro, mordendo a boca, quando você faz as malas e volta pra casa por não conseguir se encontrar na cidade grande. Estamos certos quando subitamente são seis horas da manhã e o sol nasce, a salvo, na varanda, você me passa o segundo caderno e lemos jornal, fingindo rotina.

Não explique, não peça licença, doçura, quando aparecer na porta tarde da noite, molhado de uma chuva que ninguém previu. Lá fora, lá fora, todos eles não sabem do nosso disfarce, sou aquele cara ainda pensando que é um outro, vida de séculos atrás, você aquela menina que partiu cedo e sem aviso, usando um anel de pedra negra como um presságio ruim.. A minha nobreza se recusa a morrer, por isso você me abraça e pensa que estou por um fio, um fio só me prendendo a tudo que parece valer o sangue e o sal nas feridas.

Espera um pouco, doçura, não me apresse, não queira explicações que não sei inventar. Ela me pergunta depois de dias: ele ainda continua o mesmo?, e eu querendo contar de seu rosto limpo, mas sabemos, nada é bem assim. Sento no banquinho, abro o livro ao acaso e leio a mensagem, sinuosa como cobra, “Tenho tudo que fere”. O primeiro dia, o nome falso, os imãs, não esqueço, uma praga qualquer que não resiste uma piscada de olho e o convite. Foi ela que disse: “não está morrendo, doçura”, mas não, não entendo, nem abro a porta da casa, entregando boba o relicário no pescoço (a Fera entra sorrateira pelos fundos e quebra as xícaras na cozinha), diretamente ao bandido. Favoreço todos os crimes. Você enlouquece, doçura, rasgando as cortinas em grande cena de ópera e eu, inocente, apenas reconto os cristais.

O Homem Público n 1 (Antologia)- Ana C.

"Tarde aprendi
bom mesmo
é dar a alma como lavada.
Não há razão para conservar
este fiapo de noite velha.
Que significa isso?
Há uma fita
que vai sendo cortada
deixando uma sombra
no papel.
Discursos detonam.
Não sou eu que estou ali
de roupa escura
sorrindo ou fingindo
ouvir.
No entanto
também escrevi coisas assim,
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda."

terça-feira, outubro 26, 2004

Las Dos Fridas

Posted by Hello

segunda-feira, outubro 25, 2004

Esta não é uma canção de amor

Não se move. Um gesto qualquer e o corpo explode em cacos afiados de vidro colorido. Respira devagar : algo arde dentro do músculo, fora do alcance do olho que procura no espelho. Indefinível, abre seu caminho entre o sangue com língua de fogo: as cordas de violino empenam no calor, as notas chamuscadas em eterno réquiem. Um grunhido grave saído do fundo que não sabe profundidade (sem eco), saído do centro de toda crepitação. As garras cravadas na carne mais macia, que uma mão fria insiste em espremer entre os dedos. A aorta delicadamente cortada e o tenebroso sorriso de uma caixa de ossos aberta.

Não se move. Vestígios de papéis rasgados(quando?quem?) frente ao armário. O silêncio interrompido pela palavra prensada entre a mastigação vazia das bocas. Risca o fósforo para soprá-lo em seguida, o cheiro de enxofre disfarça a memória de um gosto. Esquenta a tesoura e tatua com brasa uma flor rosa, inflamada. Olha para este a quem pediu algum desencantamento (Antes, tarde da noite, desafiara: “agora, se você quiser, agora”, sabendo a resposta), o corpo na penumbra, a linha do quadril, os músculos do braço, a curva do maxilar, os cabelos revoltos, pensa em estender sua mão e tocá-lo mas sabe: mover-se requer cuidado para que não acorde o maldito que dentro ressona.

Não se move. Desligara todos os aparelhos da estranha casa por capricho, derramara o vinho no chão ao beber do gargalo, abrira as gavetas da cozinha. “Sou um fantasma”, disse, assim que se despiu, “mas preciso voltar”. “Preciso voltar hoje, entende?”. O outro segurara seu rosto bem próximo e mordera seu lábio, arrancando sangue. Retornava, na penumbra, através do desejo alheio, mas qual seria o próximo passo, como estabelecer um nascimento sem testemunhas? Consegue dissociar o corpo do outro do ato, do suor, da saliva mas pára: por ter ido além, perdera-se, por ter esgarçado os sentidos, inundando-os de uma percepção intolerável. Mas não se arrepende.

Não se move. Ouve: o latejar das veias, tilintar de copo, voz no corredor, ganido de bicho, acorde de guitarra, mas suspeita que toda movimentação venha de dentro do corpo. Teme o movimento, este movimento de quem retorna depois de perder a consciência por tê-la ampliado demais. Esta volta de quem arriscara um mundo ao saltar de uma janela impossível. Fraturara a alma? O orgulho? O bom senso? Quê importa?, buscara o Verdadeiro, o Belo, o Bom. A dor do que foi amputado não mais existindo, qual seria o seu mais novo chamamento?

É assim que estende sua mão para o vinho, batiza sua fronte, sussurra a reza crua de solenidade. Que seja. Que seja. Isso que muitos não tem coragem, este impulso pelo mais humano, esse prazer em estar inteiro. Que seja. Abre a janela e deixa seu corpo nu reencontrar-se com o vento. Que seja. Sua pele é nova bandeira. Que seja. Sai da casa estranha, pés descalços, sem olhar pra trás.

quinta-feira, outubro 21, 2004

Pois é

"J'ai perdu ma vie pour délicatesse." (Rimbaud)

quarta-feira, outubro 20, 2004

I must confess

“Pus o amor de castigo, em algum lugar, talvez onde começa a imaginação e termina a excitação sexual das flores, não sei. Estou feliz porque não me importo mais com o coração. É uma felicidade ácida” (Dodô Azevedo, Pessoas do Século Passado)


Preciso de frases que façam efeito.
Confesso que alguns dias acordo e não sinto na-da, absolutamente nada e tenho medo, não quero ficar cínica. Mas é só uma desconfiança, nada demais. Confesso que sento para ler no banco cinza embaixo da escada, de propósito, como gosto de esticar a perna ao máximo para escapar da poça, mas não salto, apenas estico a ponta dos pés e espero tocar o chão do outro lado. Não corro para atravessar a rua quando um assassino em potencial acelera ao volante, pelo contrário, caminho mais devagar e sorrio: não confunda isso com suicídio, não, nada disso, o que estou fazendo é uma lição de civilidade radical.
Confesso que não peço mais para ser, simples assim, já sendo. Olho o céu como quem olha uma pessoa e quase digo olá, converso com o ar vezenquando e me irrito com as vozes das meninas na cozinha, bem cedo de manhã. Gosto de gente, mas não consigo gostar de quem me quer mal :elas deixam de existir, simplesmente. Não suporto pretensão em gente medíocre como não suporto o puxa-saquismo dos amigos: ando realista, tenebrosamente realista. De olhar dentro do olho e falar: não. De não ter paciência alguma para mentiras dóceis, exercito a sinceridade de forma quase brutal: não vou, não quero, ando germinando nãos, para um sim exuberante florescer entre eles. Tem sido a única maneira de me manter lúcida sem agonia.

Confesso que não me envergonho de entender. Estou acordada faz tanto tempo que não devia mais fazer aniversário. Leio, ouço e desejo compulsivamente: meu pai teme por mim e caminha mais vezes no corredor de minha casa, fumando seus cigarros. Ninguém precisa me contar disso, eu sei. Existe força no sangue, mas há algo mais, acredite: há algo bem mais profundo além do que corre nas veias e tem a cor perfeita. Não quero lembrar mais do que me dói, me recuso a covardias, talvez por isso tenha respondido à sua pergunta: “derreta a aliança e faça uma figa”. Aprendi que o tal açúcar sou eu e não me envergonho, quem quiser achar idiota, vai poder achar: sou açúcar. Rosa.

Confesso que certos destinos são óbvios, tanto que apenas dou de ombros ao constatar a resolução deles. É engraçado agora perceber a mudança que ocorre nas pessoas quando lhe arrancam o motivo-motor: engraçado que isso ocorra tantas vezes na vida, parecendo gritar que só podemos ser a raiz de nós mesmos. Não me apóio na idéia de uma mão amparando a minha ao descer a escada, isso já foi, uma era, ou duas, atrás. Conheço o fundo do mar por mergulhos péssimos. Tenho marcas nos joelhos pelos tombos solitários, situações constrangedoras onde apesar de saber, desafiava-me a continuar. Não guardo marcas nas mãos dos murros nas pontas, mas carrego marcas nas asas de to-dos os desatinos. Só agora percebo que posso ser criatura de ambos os lados: chiaro e scuro.

(continua qualquer dia)

segunda-feira, outubro 18, 2004

Códigos do Mim

“A carne é triste, sim, e eu li todos os livros”
(Mallarmé, Trecho de Brisa Marinha)

Espero como quem espera que você explique definitivamente (okey, não acredito em nada definitivo, mas feche os olhos por dois minutos e acredite no que digo) por quem espero nesse lugar. Não é esquina, alto de morro, prado, orla, rua, praça: sem geografia que o explique, dificulta a chegada, eu sei, eu sei. Aceno para as aves que migram dentro do peito, o rufar das mesmas asas entedia. A menina usa shorts curtos e desvio os olhos, sempre desvio os olhos porque ainda não sei a palavra que me liberte do desejo. Tenho suspiros fundos com um leve desafinar, como se carregasse instrumentos de sopro e um piano, daqueles negros, antigos. Símbolos de séculos que instintivamente possuo, não duvido: sou mais antiga do que essas igrejas que visito, pó ao pó, aqueles papos que nunca tivemos quando o beijava na catedral, tarde da noite.

Nasci sem explicação, coisa natural mesmo, sem assombros como o nascimento de Buda. Tenho um destino tatuado no avesso da carne, mas não ouso sussurrá-lo em seu ouvido. As horas de sono são proporcionais a minha tristeza: doze horas mortas são coração partido. Levanto-me sem acreditar que a vida não é aquela outra guardada por pálpebras fechadas, onde o que pensamos nos denuncia. Não coleciono sonhos, lembro apenas dos pesadelos, do cheiro de sangue, do cadafalso. Já assisti aos meus enterros quase todos, não esqueço o meu túmulo de pedra em outro hemisfério. Tenho hábito de olhar distante pela janela, mergulhando em plena névoa não pensada: me esqueço nos vácuos dos sentidos, nas brechas, entre os fios que tecem o novelo vermelho guardado pela caixa de ossos. Você não sabe que procuro as anti-respostas, mas inventa o personagem que não encenaria por cansaço: é ele que evita olhar nos olhos da menina, do homem deitado no meio-fio, do menino triste.

Vendo o tal, quando passava de carro, sorri e desejei-lhe uma sorte que comigo não teve: observei o jeito encurvado, a barba não feita, as mesmas pupilas felizes, envelhecemos, eu sei, eu sei, mas conservo o nome falso e os imãs não perdem efeito em meio a sucata. Convém nunca contarmos do teto antigo, das barras de ferro: uma das peças primordiais para minha bomba H íntima. Ela era só uma menina, notei seu cabelo, sua saia e o modo como sorria quando falava: que ela saiba guardar no céu da boca, os alívios que o outro precisa. Você caminha por essa rua, todos os dias e mesmo assim, isso não quer dizer rigorosamente nada a ninguém. Mas faz toda diferença quando meus passos investigam os seus, na volta para casa.

(continua)

sexta-feira, outubro 15, 2004

Every Heart is a Revolutionary Cell

"(Yeah but) Baby I've been here before
I've seen this room and I've walked this floor, (You know)
I used to live alone before I knew ya
And I've seen your flag on the marble arch
and love is not a victory march
It's a cold and it's a broken Hallelujah
Hallelujah Hallelujah Hallelujah Hallelujah...

Well there was a time when you let me know
What's really going on below
But now you never show that to me do ya
But remember when I moved in you
And the holy dove was moving too
And every breath we drew was Hallelujah
Hallelujah Hallelujah Hallelujah
Hallelujah...

Maybe there's a God above
But all I've ever learned from love
Was how to shoot somebody who outdrew ya
It's not a cry that you hear at night
It's not somebody who's seen the light
It's a cold and it's a broken Hallelujah
Hallelujah Hallelujah Hallelujah Hallelujah…" ( trecho de Hallelujah, Jeff Buckley, parte da trilha de The Edukators)

quarta-feira, outubro 13, 2004

Sem título


Talvez, seja mais sábio manter a porta fechada e entregar os pontos ao espião mais próximo. Não há motivo para gritar, derrubando as garrafas vazias em cima da mesa de alumínio. Está tarde, as pessoas se despem ou se despedem, as contas são pagas no último esforço matemático do cérebro. Alguém fala de Gil enquanto procura o resto de purpurina nos bolsos: a rebeldia para muitos está datada, fazem carreiras das antigas idéias e aspiram-nas com cal, sentados na escada. Prefiro observar a mudança de tom dos azulejos à medida que o cara dança. Um fantasma faz graça das lembranças que carrego, lambe a boca seca, finge sentir o cheiro doce. Não me importo em balançar levemente a cabeça em quase cumprimento. Sou daqueles bichos batendo na luz acesa do poste, a ilusão do instinto infalível e suas vítimas.

Várias palavras brilhantes aguardam dentro da boca do rapaz com dentes perfeitos, mas minha língua não ousa. Se pudéssemos voltar atrás, amaríamos o correto? Um dia, salvaremos o mundo ao restringirmos escolhas: para não sangrar, diminui-se também o risco da felicidade esbanjada em filmes de cento e vinte minutos. Sentarei na varanda para holografias diárias de entardecer: o que diferencia a visão real dessa outra? Qual milagre dentro dos olhos torna impossível a saciedade dentro dos limites? Toca meu pulso, ele brinca com a faca suíça, um pequeno corte no meu dedo enquanto fala coisas definitivas nas quais não acredito. Brinco imortalidade apenas para semear flores mais negras. Dizem que vampiros se transformam em lobos, sombrios banais que encantam. Uivo clandestino no canteiro central, mas ninguém se apavora.

Os nomes talhados não empoeiram apesar de. Cem rolos de papel gastos para o véu branco na avenida, combinando com o gás, as pedras voadoras de encontro aos corpos, testas, braços. As marcas lilases desabrocham em permanentes manchas e morrem cânceres. Não sei porque lembro agora de qualquer sofrimento que não pertence à minha carne. O cara pára a dança, me encara e sentencia, ironicamente solene: culpado por permanente insatisfação. Ensaio um agradecimento, mas deixo-o incompleto, cansa-me pensar em atitudes perspicazes e o tinto dos lábios do rapaz de dentes perfeitos atrai minha atenção, de que árvore você cresceu, que fruta tem seu mais exato gosto, quero perguntar-lhe sem parecer louco, mas não, foi há muito tempo, quase nada, sinto-me centenário quando percebo que aqui, nesta marca no meu peito, cravado este espinho que cisma em não sarar.

Treinamento de resistência: os sentidos no limite, o pensamento embotado, a vista enevoada, você agora diz os nomes?entrega os pontos?conta o dia em que percebeu suas mentiras e as dela? Você finge muito bem não ter rumo, rapaz, lhe daremos emprego, casa, carro popular, cesta básica, plano de saúde, roeremos sua alma, meu rapaz, somos muito capazes, não duvide, temos meios e imaginação. Lembrar de uma morte diferente, sonhar uma partida que distancie, aquela vida onde Eu não Este, sentado em uma mesa de alumínio, esquina mal iluminada pelo poste antigo, cercado de pessoas que não suspeitam que este afastamento, um disfarce: sou rapaz que se mantém incólume atravessando um país contaminado pela Peste.

segunda-feira, outubro 11, 2004

O Avesso do Avesso do Avesso

"The empty bodies stand at rest
Casualties of their own flesh
Afflicted by their dispossession
But no bodies ever knew
Nobodys
No bodies felt like you
Nobodys
Love is suicide" (Bodies, Smashing Pumpkins)
Durante dias, mudo em seu quarto, releu poemas, escreveu medíocres desabafos, dormiu um sono intranqüilo, tentou descansar em vão o corpo agoniado. Desistiu ao esperar alguma visita, alguma ligação casual que fingisse a salvação emergencial. Ao abrir a porta, conferiu o dinheiro no bolso esquerdo e o cigarro proibido pelo médico: queria viver dentro de uma música antiga durante as horas que suportasse. “O tempo é tudo que somos”, lembrou o poeta ao não trancar a porta, deixando as chaves do lado de dentro. Antes, decolagem no porto mais próximo,

Primeiro é o baque, o zumbido, uma quase náusea de ser gente ou carne ou coisa que o valha, depois um esgar dos sentidos. As cores esbofeteiam os olhos que em nada se prendem. Arrepios na espinha, um prazer eufórico nos poros ao contato com outros poros. Hoje, Eu Sou. O quê?, ele não pensa. Alardeia inconseqüência nos beijos distribuídos pela fila. Leão de boca aberta, sacode a cabeça (o baque, o zumbido) e sorri satisfeito para o Nada: já estou morto, que venha o banquete. Os fantasmas olham de lado, não sente medo, pelo contrário, olha nos olhos ocos e rosna: vocês não sabem nada. Desafia e reinventa o nome comum que lhe foi dado (Hoje, Eu Sou), segue o estranho que tem todos os sexos, dele prova um amor feito de fúria: amor é o lado brilhante da morte. Quebra o espelho do banheiro porque “ele sabe demais”, pisca sacana para dentro, porque seu papel é de vilão e nele, se faz com gosto, com gozo, já a dor desmascara a todos, grita mais uma vez para a Sombra: você não sabe nada!!

Ensaia outro vôo ao lado de uma voz que lhe conta seu desejo, é pra esse rosto comum que sussurra: "eu choraria a sua morte se pudesse sentir", e gargalha: "somos animais banais, boneca, sentados nessa escada, contando azulejos, consertando a gola da camisa, enquanto ao fundo toca qualquer coisa confusa que confundem com música". Tem os músculos quase exaustos, assim mesmo, desconexo, é que precisa sentir outro corpo. "Não, sem promessas, boneca", repete para si mesmo em voz alta, gargalha porque sente um desespero crescente ao esperar o efeito, antes o truque, antes, o passe de mágica do que o corte da navalha. A memória afia a crueldade com que se deixa a mercê das mãos que o invadem, ele jura poder escutar o som do moleiro na rua perdida de sua infância.

Lágrima desce grossa em seu rosto, se confunde com o suor: a água brilha nos corpos, tudo chove, pensa, quase maravilhado, em enlouquecida tristeza. Os bichos feridos são mais perigosos que os outros, Os Outros, repete para si mesmo, até o sol raiar lá fora, para quem ainda se dispõe ao coro. Ele quer o desfeito, o gasto, o cansado em seu uso, o que poderia saber exata identidade. "Para o inferno, as ambigüidades!", levanta o copo que transborda vermelho sangue. Ele bebe sôfrego, sertões no peito latejam, dois filetes escorrem pelo pescoço, tornando a pele mais branca. É com ódio, que assiste ao nascer do dia, decidido a continuar seu calvário insuspeito, com uma nudez que mascara sua fatalidade, exalando inocência envenenada.

"Tenho muitos nomes e me chamo Legião", gargalha mais uma vez, riso em golfadas, o mal que o consome e que ainda não mostra suas garras, corroendo a madeira escura dessa casa que não conhece mais. As preces ácidas que inventa, ele reza perversamente para o chão, para a sujeira, que nada o salve, que tudo o consuma como deveria ser, como deveria ser antes de ter sabido o nome da Fera e ter-lhe feito a corte. E antes que consiga lembrá-lo, prepara o fôlego para voar mais uma vez.