London Calling
(trecho de um conto que estou escrevendo de mesmo nome)
Estou com sede. Faz um sol obsceno lá fora. Finjo que acordei cedo para não dar sossego ao corpo. Faço as coisas que escrevi na lista ás seis da tarde de ontem. Bebo litros de água e escrevo frases soltas. Estou quieto e repito sempre ahn?, quando perguntam algo.
Você sabe que estou falando com você mesmo quando não estou falando com você? Os meus dedos enrolando seu cabelo ontem de noite e eu inventando outro nome para isso que a gente faz quando não tem muito sentido. A cidade amanheceu vazia enquanto descia a rua, reclamando do abandono das coisas em volta: me perturba o ponto em que chegamos. Escuto o que você me diz como se importasse, mas apenas reparo no contorno do seu rosto e como seria fácil risca-lo no papel.
- Eu queria ter um pedaço de carvão agora
- ?
- Eu queria um pedaço de carvão e papel. Seria fácil riscar daqui até aqui- digo isso tocando seu rosto.
Você sorri e seu sorriso é igual ao de todo mundo. Sinto um estranho alívio ao pensar isso: você é igual a todo mundo. As mentiras começam quando achamos que podemos tudo diferente, permanecendo os mesmos. Talvez você ficasse triste se soubesse que estou pensando assim, você demora a entender porque pensa que me conhece muito bem. Sou eu que iludo, sou eu que invento esse personagem de fácil convivência e de doçura incontestável.
Você gosta de mim porque danço engraçado. Tocava Clash e eu vestia uma camisa dos Ramones preta com jeans velho, calçava minha bota gasta e sorria, balançando a cabeça. Sorria porque não sabia a letra e mesmo que soubesse, não queria cantá-la: apenas sacudia a cabeça, batia meus pés no chão, mãos fechadas pra trás. Você ficou olhando pra mim, sozinha no canto, sorrindo, cabelos soltos, durante um tempo que não sei precisar. Quando a música acabou, caminhei para o bar e lá, encostado do meu lado, você perguntou se gostava de punk.
- Eu não sei.
- Quê?
- O quê você perguntou: eu não sei se gosto de punk.
- Mas você dança como se gostasse.
- Eu sei, mas gosto da música que estava tocando, daí a gostar de punk....
- Entendi.
Acho que você não gostou do que respondi. Mas não se afastou, continuou ali, sacudindo a cabeça, vendo as pessoas em volta. Gosto disso: ver as pessoas quando elas não imaginam que estão sendo vistas ou não se importam. Não sei se você está vendo o mesmo: há muito tempo atrás, pensei que pudéssemos ver a mesma coisa, repartir a mesma miragem. Depois percebi que não, não podemos, as minhas janelas dão para outro lugar. Companhia para ver o fim do mundo, essa casa que busco, talvez não seja bem o que os outros imaginam como ideal: assumo que minha natureza tem muito desse passadismo. Como o diálogo entre a as agentes do céu e do inferno, naquele filme espanhol:
Você sabe que estou falando com você mesmo quando não estou falando com você? Os meus dedos enrolando seu cabelo ontem de noite e eu inventando outro nome para isso que a gente faz quando não tem muito sentido. A cidade amanheceu vazia enquanto descia a rua, reclamando do abandono das coisas em volta: me perturba o ponto em que chegamos. Escuto o que você me diz como se importasse, mas apenas reparo no contorno do seu rosto e como seria fácil risca-lo no papel.
- Eu queria ter um pedaço de carvão agora
- ?
- Eu queria um pedaço de carvão e papel. Seria fácil riscar daqui até aqui- digo isso tocando seu rosto.
Você sorri e seu sorriso é igual ao de todo mundo. Sinto um estranho alívio ao pensar isso: você é igual a todo mundo. As mentiras começam quando achamos que podemos tudo diferente, permanecendo os mesmos. Talvez você ficasse triste se soubesse que estou pensando assim, você demora a entender porque pensa que me conhece muito bem. Sou eu que iludo, sou eu que invento esse personagem de fácil convivência e de doçura incontestável.
Você gosta de mim porque danço engraçado. Tocava Clash e eu vestia uma camisa dos Ramones preta com jeans velho, calçava minha bota gasta e sorria, balançando a cabeça. Sorria porque não sabia a letra e mesmo que soubesse, não queria cantá-la: apenas sacudia a cabeça, batia meus pés no chão, mãos fechadas pra trás. Você ficou olhando pra mim, sozinha no canto, sorrindo, cabelos soltos, durante um tempo que não sei precisar. Quando a música acabou, caminhei para o bar e lá, encostado do meu lado, você perguntou se gostava de punk.
- Eu não sei.
- Quê?
- O quê você perguntou: eu não sei se gosto de punk.
- Mas você dança como se gostasse.
- Eu sei, mas gosto da música que estava tocando, daí a gostar de punk....
- Entendi.
Acho que você não gostou do que respondi. Mas não se afastou, continuou ali, sacudindo a cabeça, vendo as pessoas em volta. Gosto disso: ver as pessoas quando elas não imaginam que estão sendo vistas ou não se importam. Não sei se você está vendo o mesmo: há muito tempo atrás, pensei que pudéssemos ver a mesma coisa, repartir a mesma miragem. Depois percebi que não, não podemos, as minhas janelas dão para outro lugar. Companhia para ver o fim do mundo, essa casa que busco, talvez não seja bem o que os outros imaginam como ideal: assumo que minha natureza tem muito desse passadismo. Como o diálogo entre a as agentes do céu e do inferno, naquele filme espanhol:
- Lola, bondade não torna uma mulher interessante. Não é muito sexy.
- Mas é chic, e isso anda faltando no mundo.
Você pára e olha para mim, toca o meu cabelo, gosto de sentir as suas mãos na minha cabeça, me sinto um gato, cachorro, periquito, um bicho desses, com os meus olhos fechados, quero ronronar para que você saiba que está tudo bem, que é bom, mas não faço nada. Quando sinto sua boca na minha, assim, devagar, é como se algo morno me cobrisse, como se afundasse em uma banheira de leite quente. Você me beija sem pressa, enquanto encosta seu corpo no meu, cada vez mais. Imagino qual seria o peso do seu corpo sobre o meu, como é sua pele embaixo da camisa, qual o gosto do seu suor. Não sei o que você está pensando, não quero saber: não faria nenhuma diferença para o meu desejo, talvez você imagine outra garota, talvez.
Você segura a minha mão com força, sem machucar. Olha por alguns instantes, dentro dos meus olhos, começo a me sentir um pouco zonza, você suspira e sorri mais uma vez. Abre caminho até a porta, não nos falamos mais nada. Não sei se confio em você quando me diz que não esperava me encontrar ali, mas penso em que consiste esta tal confiança que por vezes insistimos em sentir. Sei que você pode confiar em mim porque me conheço e talvez meu excesso de lealdade me cause mais desastres que qualquer outra coisa. Mas eu seguro sua mão com força e com a outra, seguro seu ombro, protegendo meu rosto da luz da rua.
Não me assusto quando percebo que estamos em seu quarto, nem reparo na decoração do apartamento. Está escuro ainda porque suas cortinas estão fechadas. Você sai e volta com uma garrafa de água e um copo apenas: um detalhe que me faz gostar de estar sentada na beira da sua cama. Estranhos que sentem sede e dividem o mesmo copo de água. Imagino nossos novos nomes nesse filme que invento e passa no teto do seu quarto de dormir. Você gosta de mim porque, ás vezes, fico muito calada e pareço distante. A minha sensação ponto solto, de incomunicabilidade, te atrai: nunca imaginei que minha solidão pudesse ser interessante, talvez você seja esquisito demais. Quero provar de você como se pudesse esticar a mão e pegar esta fruta e mordê-la: como se você crescesse em uma árvore e pudesse te colher ás cinco horas da manhã. Estou com fome e me alimento de você, agora que penso isso, talvez eu é que seja esquisita.
(......)
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