"Que seja doce."(CFA)

quarta-feira, outubro 27, 2004

Doçura

Desisto de brincar disso, doçura. Não penso mais: acordo cedo todos os dias e alguém estranha meu sorriso ao comer maçãs. Olho pela janela e longe só consigo enxergar o Cristo. Escrevi um roteiro de cinema, um curta sendo longa sendo ó, céus, como você poderia estar certo, meu caro amigo (diria a ele, que está na cidade, pelo que ouvi falar). Estamos correndo demais, coloco a mão em seu joelho, da última vez, evitei tanto chegar que julguei estar perdida: não estava mentindo quando disse que a sua porta é como a porta de Alice, aquela história que insisto em comentar.

Não, doçura, não seja tão desleal ao brincar assim, não finjo mais ser essa de mãos longas serenamente postas em cima da mesa: instead, vou quebrando todos os palitinhos, olhando para você, fatal e séria, contar suas histórias. Derrama a bebida no meu copo e descreve uma viagem qualquer, vou fingir que nunca mudamos de lugar. Chego com meus olhos baixos, disfarçando intenção, peço uma dupla dose de gentilezas, lembro dela cantando e me fazendo prometer que não vai ser diferente, nunca vai ser diferente, mas não há nada a fazer quando de propósito fingimos que não dói, não, não dói.

Fazer o quê, doçura, não chore por um ou dois, nem três amores desfeitos, amor é uma planta que se encolhe ao toque, no meu peito, os vasos vazios prometendo uma visita que um dia, um dia, chega, mas por enquanto, só esta encenação profundamente melodramática. Fazer o quê com esta saudade do ainda não, que nos põe tão crédulos e loucos a acreditar em todas as falas polvilhando falso açúcar? Você me olha e esqueço que um dia quebrei a asa, suicida e nostálgica. Seguro o choro, mordendo a boca, quando você faz as malas e volta pra casa por não conseguir se encontrar na cidade grande. Estamos certos quando subitamente são seis horas da manhã e o sol nasce, a salvo, na varanda, você me passa o segundo caderno e lemos jornal, fingindo rotina.

Não explique, não peça licença, doçura, quando aparecer na porta tarde da noite, molhado de uma chuva que ninguém previu. Lá fora, lá fora, todos eles não sabem do nosso disfarce, sou aquele cara ainda pensando que é um outro, vida de séculos atrás, você aquela menina que partiu cedo e sem aviso, usando um anel de pedra negra como um presságio ruim.. A minha nobreza se recusa a morrer, por isso você me abraça e pensa que estou por um fio, um fio só me prendendo a tudo que parece valer o sangue e o sal nas feridas.

Espera um pouco, doçura, não me apresse, não queira explicações que não sei inventar. Ela me pergunta depois de dias: ele ainda continua o mesmo?, e eu querendo contar de seu rosto limpo, mas sabemos, nada é bem assim. Sento no banquinho, abro o livro ao acaso e leio a mensagem, sinuosa como cobra, “Tenho tudo que fere”. O primeiro dia, o nome falso, os imãs, não esqueço, uma praga qualquer que não resiste uma piscada de olho e o convite. Foi ela que disse: “não está morrendo, doçura”, mas não, não entendo, nem abro a porta da casa, entregando boba o relicário no pescoço (a Fera entra sorrateira pelos fundos e quebra as xícaras na cozinha), diretamente ao bandido. Favoreço todos os crimes. Você enlouquece, doçura, rasgando as cortinas em grande cena de ópera e eu, inocente, apenas reconto os cristais.