"Que seja doce."(CFA)

segunda-feira, outubro 11, 2004

O Avesso do Avesso do Avesso

"The empty bodies stand at rest
Casualties of their own flesh
Afflicted by their dispossession
But no bodies ever knew
Nobodys
No bodies felt like you
Nobodys
Love is suicide" (Bodies, Smashing Pumpkins)
Durante dias, mudo em seu quarto, releu poemas, escreveu medíocres desabafos, dormiu um sono intranqüilo, tentou descansar em vão o corpo agoniado. Desistiu ao esperar alguma visita, alguma ligação casual que fingisse a salvação emergencial. Ao abrir a porta, conferiu o dinheiro no bolso esquerdo e o cigarro proibido pelo médico: queria viver dentro de uma música antiga durante as horas que suportasse. “O tempo é tudo que somos”, lembrou o poeta ao não trancar a porta, deixando as chaves do lado de dentro. Antes, decolagem no porto mais próximo,

Primeiro é o baque, o zumbido, uma quase náusea de ser gente ou carne ou coisa que o valha, depois um esgar dos sentidos. As cores esbofeteiam os olhos que em nada se prendem. Arrepios na espinha, um prazer eufórico nos poros ao contato com outros poros. Hoje, Eu Sou. O quê?, ele não pensa. Alardeia inconseqüência nos beijos distribuídos pela fila. Leão de boca aberta, sacode a cabeça (o baque, o zumbido) e sorri satisfeito para o Nada: já estou morto, que venha o banquete. Os fantasmas olham de lado, não sente medo, pelo contrário, olha nos olhos ocos e rosna: vocês não sabem nada. Desafia e reinventa o nome comum que lhe foi dado (Hoje, Eu Sou), segue o estranho que tem todos os sexos, dele prova um amor feito de fúria: amor é o lado brilhante da morte. Quebra o espelho do banheiro porque “ele sabe demais”, pisca sacana para dentro, porque seu papel é de vilão e nele, se faz com gosto, com gozo, já a dor desmascara a todos, grita mais uma vez para a Sombra: você não sabe nada!!

Ensaia outro vôo ao lado de uma voz que lhe conta seu desejo, é pra esse rosto comum que sussurra: "eu choraria a sua morte se pudesse sentir", e gargalha: "somos animais banais, boneca, sentados nessa escada, contando azulejos, consertando a gola da camisa, enquanto ao fundo toca qualquer coisa confusa que confundem com música". Tem os músculos quase exaustos, assim mesmo, desconexo, é que precisa sentir outro corpo. "Não, sem promessas, boneca", repete para si mesmo em voz alta, gargalha porque sente um desespero crescente ao esperar o efeito, antes o truque, antes, o passe de mágica do que o corte da navalha. A memória afia a crueldade com que se deixa a mercê das mãos que o invadem, ele jura poder escutar o som do moleiro na rua perdida de sua infância.

Lágrima desce grossa em seu rosto, se confunde com o suor: a água brilha nos corpos, tudo chove, pensa, quase maravilhado, em enlouquecida tristeza. Os bichos feridos são mais perigosos que os outros, Os Outros, repete para si mesmo, até o sol raiar lá fora, para quem ainda se dispõe ao coro. Ele quer o desfeito, o gasto, o cansado em seu uso, o que poderia saber exata identidade. "Para o inferno, as ambigüidades!", levanta o copo que transborda vermelho sangue. Ele bebe sôfrego, sertões no peito latejam, dois filetes escorrem pelo pescoço, tornando a pele mais branca. É com ódio, que assiste ao nascer do dia, decidido a continuar seu calvário insuspeito, com uma nudez que mascara sua fatalidade, exalando inocência envenenada.

"Tenho muitos nomes e me chamo Legião", gargalha mais uma vez, riso em golfadas, o mal que o consome e que ainda não mostra suas garras, corroendo a madeira escura dessa casa que não conhece mais. As preces ácidas que inventa, ele reza perversamente para o chão, para a sujeira, que nada o salve, que tudo o consuma como deveria ser, como deveria ser antes de ter sabido o nome da Fera e ter-lhe feito a corte. E antes que consiga lembrá-lo, prepara o fôlego para voar mais uma vez.