"Que seja doce."(CFA)

segunda-feira, setembro 06, 2004

Medo do escuro

“Meu amor
O que você faria se só te restasse esse dia?
Se o mundo fosse acabar

Me diz, o que você faria?” (Paulinho Moska)

Encenação. Um desconhecido encontra outro, madrugada. Na rua de um bairro sujo, duas sombras a mais não fazem diferença. Ela, ele, eles, elas, isso não importa. Nome, status, profissão, quanto no bolso, se foi a Europa, se nunca viu neve, se tem horror a felinos, nada disso garante suspense, clímax ou final feliz. Dois corpos com bocas que se provam, que tem mais medo do que fome, quando a hora mais escura. Até amanhecer, alguém pede, fica comigo até amanhecer. O outro não se assusta, talvez a bebida talvez outra coisa qualquer, faça com que fique, não porque se importa, mas porque tanto faz. Tanto faz, o mundo, as pessoas estão podres ou ocas ou algo assim, estamos abandonados, fadados a acordarmos cada vez mais lúcidos, cada vez mais lúcidos e esta lucidez nos doendo mais e mais como um nervo pinçado, como um músculo estirado. Por isso, talvez, seja preciso este brinde, este desafio, correr algum perigo ou ficar um pouco mais quando pedem. Fica porque ninguém talvez espere ou quem vá abrir a porta tenha sucumbido, junto com os outros e não saiba que a morte já caminha a passos largos dentro dele.

Pois estas sombras se alimentam, sem questionar se a saciedade possível, continuam descobrindo, tateando, gemendo, ainda tão escuro lá fora, quase ninguém desconfia, se desconfiasse nada, nada, há um costume crescente em ignorarmos uns aos outros, eles sabem, por isso, continuam, não temem a violência da cidade laranja, talvez ela se compadeça, mas não é culpa do concreto, nem do mar, não, a culpa, se perdeu de sua própria razão e vaga, um fantasma entre tantos. Não contam histórias tristes, elas existem, não há remédio, shit happens, não me diga nada, nem seu nome, alguém pede, não preciso de nada disso além do que está aqui, entre você e eu. Um acordo entre estranhos talvez seja melhor, sim, talvez, não vamos tornar sério e cínico, não, quero assim mesmo superficial e grave, paradoxo banal. O outro concorda em seu silêncio, se escuta mesmo ou não, outro enigma reles, depois de tanto provado em uma noite qualquer, difícil precisar o quanto de atenção se esvai entre as doses.

Vontade súbita de gritar, um horror, uma náusea, tudo tão ferrado, perdido, quem ainda pode discutir liberdade, essa palavra justificou abusos tantos, um berro, assustador, que acordasse quem se recusa, os covardes. Não, não, nenhum som, além deste abafado que um punho tapa, os dentes cravados na carne, a marca, não tem importância, alguém diz, com força, crava os dentes, o outro sorri ao ver o vermelho quente, sinistro é ter desejo, sinistro é esse desespero entre carnes que se encaixam, séculos e séculos de maldição batem a porta de uma casa, mas não, não há ninguém.

A hora mais escura, tentam lembrar do familiar, do seguro e comum, do sem riscos, de dias amenos e noites tranqüilas, nada disso os alcança, madrugada adentro, na sujeira, na fome, na pobreza, estão cercados, embora jovens, seus corpos são a última trincheira. Guerreiam, sem notar que a batalha inútil, confusos, o inimigo não está entre, mas lá fora, invisível, mandando estranhos sinais de trégua. Guerreiam, chocam-se, submetem, subjugam, sem pudores, sem ternura, renegam identidade, fingem-se quase bichos. E nesse quase se olham, com fome de delicadezas, fraqueza que não admitem pela fatalidade que representa. Humanos não nascem para seguir a própria natureza, nascem destinados. Destino é a armadilha, eles sabem, como o sagrado é apenas uma desculpa quando olham para o alto. O céu está vazio quando amanhece. E a rua não chora pelas sombras, nem se despede. Elas sempre voltam, precisam voltar.