Códigos do Mim
“A carne é triste, sim, e eu li todos os livros”
(Mallarmé, Trecho de Brisa Marinha)
Espero como quem espera que você explique definitivamente (okey, não acredito em nada definitivo, mas feche os olhos por dois minutos e acredite no que digo) por quem espero nesse lugar. Não é esquina, alto de morro, prado, orla, rua, praça: sem geografia que o explique, dificulta a chegada, eu sei, eu sei. Aceno para as aves que migram dentro do peito, o rufar das mesmas asas entedia. A menina usa shorts curtos e desvio os olhos, sempre desvio os olhos porque ainda não sei a palavra que me liberte do desejo. Tenho suspiros fundos com um leve desafinar, como se carregasse instrumentos de sopro e um piano, daqueles negros, antigos. Símbolos de séculos que instintivamente possuo, não duvido: sou mais antiga do que essas igrejas que visito, pó ao pó, aqueles papos que nunca tivemos quando o beijava na catedral, tarde da noite.
Nasci sem explicação, coisa natural mesmo, sem assombros como o nascimento de Buda. Tenho um destino tatuado no avesso da carne, mas não ouso sussurrá-lo em seu ouvido. As horas de sono são proporcionais a minha tristeza: doze horas mortas são coração partido. Levanto-me sem acreditar que a vida não é aquela outra guardada por pálpebras fechadas, onde o que pensamos nos denuncia. Não coleciono sonhos, lembro apenas dos pesadelos, do cheiro de sangue, do cadafalso. Já assisti aos meus enterros quase todos, não esqueço o meu túmulo de pedra em outro hemisfério. Tenho hábito de olhar distante pela janela, mergulhando em plena névoa não pensada: me esqueço nos vácuos dos sentidos, nas brechas, entre os fios que tecem o novelo vermelho guardado pela caixa de ossos. Você não sabe que procuro as anti-respostas, mas inventa o personagem que não encenaria por cansaço: é ele que evita olhar nos olhos da menina, do homem deitado no meio-fio, do menino triste.
Vendo o tal, quando passava de carro, sorri e desejei-lhe uma sorte que comigo não teve: observei o jeito encurvado, a barba não feita, as mesmas pupilas felizes, envelhecemos, eu sei, eu sei, mas conservo o nome falso e os imãs não perdem efeito em meio a sucata. Convém nunca contarmos do teto antigo, das barras de ferro: uma das peças primordiais para minha bomba H íntima. Ela era só uma menina, notei seu cabelo, sua saia e o modo como sorria quando falava: que ela saiba guardar no céu da boca, os alívios que o outro precisa. Você caminha por essa rua, todos os dias e mesmo assim, isso não quer dizer rigorosamente nada a ninguém. Mas faz toda diferença quando meus passos investigam os seus, na volta para casa.
(continua)
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