"Que seja doce."(CFA)

quarta-feira, outubro 13, 2004

Sem título


Talvez, seja mais sábio manter a porta fechada e entregar os pontos ao espião mais próximo. Não há motivo para gritar, derrubando as garrafas vazias em cima da mesa de alumínio. Está tarde, as pessoas se despem ou se despedem, as contas são pagas no último esforço matemático do cérebro. Alguém fala de Gil enquanto procura o resto de purpurina nos bolsos: a rebeldia para muitos está datada, fazem carreiras das antigas idéias e aspiram-nas com cal, sentados na escada. Prefiro observar a mudança de tom dos azulejos à medida que o cara dança. Um fantasma faz graça das lembranças que carrego, lambe a boca seca, finge sentir o cheiro doce. Não me importo em balançar levemente a cabeça em quase cumprimento. Sou daqueles bichos batendo na luz acesa do poste, a ilusão do instinto infalível e suas vítimas.

Várias palavras brilhantes aguardam dentro da boca do rapaz com dentes perfeitos, mas minha língua não ousa. Se pudéssemos voltar atrás, amaríamos o correto? Um dia, salvaremos o mundo ao restringirmos escolhas: para não sangrar, diminui-se também o risco da felicidade esbanjada em filmes de cento e vinte minutos. Sentarei na varanda para holografias diárias de entardecer: o que diferencia a visão real dessa outra? Qual milagre dentro dos olhos torna impossível a saciedade dentro dos limites? Toca meu pulso, ele brinca com a faca suíça, um pequeno corte no meu dedo enquanto fala coisas definitivas nas quais não acredito. Brinco imortalidade apenas para semear flores mais negras. Dizem que vampiros se transformam em lobos, sombrios banais que encantam. Uivo clandestino no canteiro central, mas ninguém se apavora.

Os nomes talhados não empoeiram apesar de. Cem rolos de papel gastos para o véu branco na avenida, combinando com o gás, as pedras voadoras de encontro aos corpos, testas, braços. As marcas lilases desabrocham em permanentes manchas e morrem cânceres. Não sei porque lembro agora de qualquer sofrimento que não pertence à minha carne. O cara pára a dança, me encara e sentencia, ironicamente solene: culpado por permanente insatisfação. Ensaio um agradecimento, mas deixo-o incompleto, cansa-me pensar em atitudes perspicazes e o tinto dos lábios do rapaz de dentes perfeitos atrai minha atenção, de que árvore você cresceu, que fruta tem seu mais exato gosto, quero perguntar-lhe sem parecer louco, mas não, foi há muito tempo, quase nada, sinto-me centenário quando percebo que aqui, nesta marca no meu peito, cravado este espinho que cisma em não sarar.

Treinamento de resistência: os sentidos no limite, o pensamento embotado, a vista enevoada, você agora diz os nomes?entrega os pontos?conta o dia em que percebeu suas mentiras e as dela? Você finge muito bem não ter rumo, rapaz, lhe daremos emprego, casa, carro popular, cesta básica, plano de saúde, roeremos sua alma, meu rapaz, somos muito capazes, não duvide, temos meios e imaginação. Lembrar de uma morte diferente, sonhar uma partida que distancie, aquela vida onde Eu não Este, sentado em uma mesa de alumínio, esquina mal iluminada pelo poste antigo, cercado de pessoas que não suspeitam que este afastamento, um disfarce: sou rapaz que se mantém incólume atravessando um país contaminado pela Peste.