"Que seja doce."(CFA)

segunda-feira, setembro 27, 2004

Dor Fantasma

(chama-se dor fantasma a dor crônica de um membro fantasma, ou seja, a continuação da dor em um membro amputado)

“Não me lembro bem da sua cara
Qual a cor dos olhos, já nem sei
Só o cheiro do seu cheiro
Não quer me deixar mais em paz
Nos ares dos lugares

Onde passo e onde nunca estás”(Cássia Eller)

Devia estar aqui, penso enquanto reviro bolsos, caixas, pastas, gavetas. Refaço itinerários, mapas mentais exaustivos, horas e inclinação dos astros. Arde algo cujo nome ainda não compreendo, talvez porque não o tenha aprendido. Certas noites, o fantasma dela murmura palavras de desamparo e suspira, marcando com seu hálito quente os vitrais.

Bato nesta porta. Não sei porque venho aqui. Importa apenas que retorno: fecho as mãos até que os nós dos dedos fiquem brancos e minhas veias apareçam azuis. Sei que ninguém em casa, luzes apagadas, cartas se acumulam na caixa de correio, plantas secam no vaso da janela do segundo andar. Na última visita, com raiva, quebrei uma vidraça, como resposta o silêncio zumbindo em meu ouvido.

Sentado no degrau da frente, tento lembrar. Nada, nenhum traço, jeito de olhar, marca de nascença, timbre de voz consegue emergir do profundo da memória: mesmo assim permanece um gosto embaixo da língua, um cheiro peculiar, indefinível. O fracasso sentimental de nossas ideologias talvez nos persiga, mas não lembro se cheguei a hastear bandeiras e decorar hinos. Alguém diria faz tanto tempo, balançando a cabeça, a marcar o óbvio com caneta vermelha.

Acordo, o cansaço pegado em meus poros como um bicho que se alimenta de sangue. Acordo, a sensação de estar voltando para um lugar indefinível como o campo dos sonhos: estendo a mão buscando alcançar o véu que separa o palco da coxia, vou sentindo que por um triz, por um triz, me escapa o real sentido, a ilusão final, a grande cena. Não há pior sentir que esse, garanto: a de que tudo por um fio se mantém, Maya semi-nua.

Acendo cinzas de flores mortas para espantar o cheiro acre das coisas que se decompõem e nos pertenciam. Não sei porque falo “nós” agora, tarde da noite: nesse quarto escuro, o plural interrompe o eco da minha voz para o abismo, quase me faz acreditar que houve uma época onde era possível qualquer boca outra que não essa que toco perguntar até quando? E me ouvir responder: para sempre. Não existem para sempres nessa terra, sinto muito, sinto imensamente tua perda, ó Senhora, mas todos sabemos que a Hora se aproxima, tão espessa e escura que impõe gravidade ao monólogo inútil.

Não há nada aqui, desisto de buscar nos bolsos, caixas, pastas, gavetas. Deixo de olhar os sinais no caminho, ignoro os símbolos marcados na madeira escura da porta que não mais esmurro. Em vão, seguiria o rastro do espectro embora ainda ouça o lamento distante, séculos de beijos frios nos vitrais. Não há, fecho as mãos no peito oco, a vaziez decantada pelo insano poeta.


quinta-feira, setembro 16, 2004

Trip

De cara limpa para mim diz que isso mesmo, isso mesmo. Um velho senta no banco do Centro Cultural e bebe água de sua garrafa plástica azul e come maisena, todos os dias, todos os dias, ele senta abre sua mala tira sua garrafa bebe sua água que escorre pelo queixo e passa sua mão uva passa sua mão tentando secá-lo. Uma menina espera outra menina que chega com óculos escuros elas riem falam coisas que não quero nem preciso nem faz nenhuma diferença conversam gesticulam tocam seus cabelos braços pernas mostram ombros acendem cigarros e jogam cabeças vazias cabeças para trás.

Pouca distinção entre o homem e o outro homem que se beijam me beijam fumamos bebemos dizemos pouco silêncios leves passeiam em luas que desconhecemos que desconheço há muito não olhamos pra cima não olhamos para o lado olhamos dentro ás vezes com horror assombro um prazer sádico de não vermos nada além de paisagens desoladas de modernidades falidas. Ele não pergunta onde estaremos eu ele o homem o velho rangendo entre os botões do casaco que me empresta porque sinto frio sempre sinto frio não tendo casaco que consiga aquecer desse frio irracional gelando pele azulando boca encolhendo os longos dedos que tocam a barba por fazer. Perfume de pêras pêssegos chá de romã maracujá suas flores no meu cabelo queria adornar que o verbo pudesse fazer de mim o que o florido promete apenas.

Carne da tua carne da minha carne que se desfaz desfazendo cada instante em que atravessamos o caos da multidão de latas metálicas paralelas umas ás outras desordenamente. Calados supostamente tímidos nos perguntamos pelos olhos seus olhos vazados parecem mais janelas que as janelas do apartamento amarelo de porta escura onde nos escondemos quinze dias duas semanas inteiras do convívio das coisas que poderiam nos fazer escolher outro caminho pelo corredor vazio fantasmas apontam para o norte não sei o que querem um morto alto como um arranha-céu vejo apenas suas mãos fortes que não existem mais.

Meia noite o coração explode pedaços atingem suas costas como facada que se crava sem ver com olhos fechados profiro nome proibido para que me busque galopando entre meus sustos medos fraquezas tantas que ande por sobre as águas como um cristo menor que possa amar e tocar próximo que me diga que tudo bem nunca mais dormirei olhando aterrorizada a luz acesa do banheiro na estrada eles me sabem acenam finjo que não é comigo escuto coisas ó meu pai escuto lamentos pedidos larguem minhas gavetas meus segredos.

Conta em oração confessionário delírios de quase morta muito viva viva eu viva tu não posso mais rir dentes fortes uma vez um dentista deu aula com essa arcada perfeita o negro ensandecido esmurrou o lado que dói quando o tempo muda. Ele me veio assim entre as nuvens de fumaça do lugar pegou minha mão riu resgatou em catequese alguém diria que abuso quando estapeada eu pedia sempre quis perdida em mim de mim não volto mais àqueles quartos vazios onde um homem beija um homem que me beija e eu olho todos os dias esse velho não sabe que a morte caminha entre os dois entre os dois um saber que não se diz.

segunda-feira, setembro 06, 2004

Medo do escuro

“Meu amor
O que você faria se só te restasse esse dia?
Se o mundo fosse acabar

Me diz, o que você faria?” (Paulinho Moska)

Encenação. Um desconhecido encontra outro, madrugada. Na rua de um bairro sujo, duas sombras a mais não fazem diferença. Ela, ele, eles, elas, isso não importa. Nome, status, profissão, quanto no bolso, se foi a Europa, se nunca viu neve, se tem horror a felinos, nada disso garante suspense, clímax ou final feliz. Dois corpos com bocas que se provam, que tem mais medo do que fome, quando a hora mais escura. Até amanhecer, alguém pede, fica comigo até amanhecer. O outro não se assusta, talvez a bebida talvez outra coisa qualquer, faça com que fique, não porque se importa, mas porque tanto faz. Tanto faz, o mundo, as pessoas estão podres ou ocas ou algo assim, estamos abandonados, fadados a acordarmos cada vez mais lúcidos, cada vez mais lúcidos e esta lucidez nos doendo mais e mais como um nervo pinçado, como um músculo estirado. Por isso, talvez, seja preciso este brinde, este desafio, correr algum perigo ou ficar um pouco mais quando pedem. Fica porque ninguém talvez espere ou quem vá abrir a porta tenha sucumbido, junto com os outros e não saiba que a morte já caminha a passos largos dentro dele.

Pois estas sombras se alimentam, sem questionar se a saciedade possível, continuam descobrindo, tateando, gemendo, ainda tão escuro lá fora, quase ninguém desconfia, se desconfiasse nada, nada, há um costume crescente em ignorarmos uns aos outros, eles sabem, por isso, continuam, não temem a violência da cidade laranja, talvez ela se compadeça, mas não é culpa do concreto, nem do mar, não, a culpa, se perdeu de sua própria razão e vaga, um fantasma entre tantos. Não contam histórias tristes, elas existem, não há remédio, shit happens, não me diga nada, nem seu nome, alguém pede, não preciso de nada disso além do que está aqui, entre você e eu. Um acordo entre estranhos talvez seja melhor, sim, talvez, não vamos tornar sério e cínico, não, quero assim mesmo superficial e grave, paradoxo banal. O outro concorda em seu silêncio, se escuta mesmo ou não, outro enigma reles, depois de tanto provado em uma noite qualquer, difícil precisar o quanto de atenção se esvai entre as doses.

Vontade súbita de gritar, um horror, uma náusea, tudo tão ferrado, perdido, quem ainda pode discutir liberdade, essa palavra justificou abusos tantos, um berro, assustador, que acordasse quem se recusa, os covardes. Não, não, nenhum som, além deste abafado que um punho tapa, os dentes cravados na carne, a marca, não tem importância, alguém diz, com força, crava os dentes, o outro sorri ao ver o vermelho quente, sinistro é ter desejo, sinistro é esse desespero entre carnes que se encaixam, séculos e séculos de maldição batem a porta de uma casa, mas não, não há ninguém.

A hora mais escura, tentam lembrar do familiar, do seguro e comum, do sem riscos, de dias amenos e noites tranqüilas, nada disso os alcança, madrugada adentro, na sujeira, na fome, na pobreza, estão cercados, embora jovens, seus corpos são a última trincheira. Guerreiam, sem notar que a batalha inútil, confusos, o inimigo não está entre, mas lá fora, invisível, mandando estranhos sinais de trégua. Guerreiam, chocam-se, submetem, subjugam, sem pudores, sem ternura, renegam identidade, fingem-se quase bichos. E nesse quase se olham, com fome de delicadezas, fraqueza que não admitem pela fatalidade que representa. Humanos não nascem para seguir a própria natureza, nascem destinados. Destino é a armadilha, eles sabem, como o sagrado é apenas uma desculpa quando olham para o alto. O céu está vazio quando amanhece. E a rua não chora pelas sombras, nem se despede. Elas sempre voltam, precisam voltar.

quarta-feira, setembro 01, 2004

Referências

“(Tua boca brilhando, boca de mulher
Nem mel, nem mentira
O que ela me fez sofrer, o que ela me deu de prazer
O que de mim ninguém tira
Carne da palavra, carne do silêncio
Minha paz e minha ira

Boca, tua boca, boca, tua boca, cala minha boca)” (Este amor, Caetano Veloso)

Então, tratos desfeitos, paz fingida de elogio e respeito incomodando quem passa, esta hora, da tarde rosa, não importa, gratidão nos bolsos, dê esmola, resto de afeto conta-gotas, na bolsa, comprimidos que fazem voar. Olhe para frente, não, para baixo, onde um corpo de homem dorme, ninguém sabe de onde veio, mas já que aqui, que sacie, satisfaça e suje. Moral por moral, nenhuma, o tempo roerá os enganos, lambendo a beira do doce oferecido em dia qualquer lá no futuro, que não interessa, distante assim, dê o que está perto, presente, aqui, a carne, a saliva, suor, lágrima, riso, dê o quê fará falta na alma, dê o quê te deixará mais pobre, talvez, irreconhecível. Praguejar não tem efeito nenhum além de chocar a platéia, mande ás favas, á merda, um passeio no inferno nosso de cada dia, onde finge-se não ouvir, sentir, pensar em nome do normal e tributável, da morte atravessando a avenida, tartaruga em seu casco protegida.

As rimas não controladas, revolta de gritar no meio de praça, agarrar pelo colarinho, sacudir e dar na cara, sonoro sempre, sonoro como deve ser a vontade quando vermelha, não aos falsos pudores, vergonhas bestas de quem nada passou de assombro, os vampiros andam á luz do dia e nos dizem passar bem, meu bem, até a próxima mordida. Os pombos infames ratos sobre nossas cabeças, um grito de mulher chega até o décimo andar do edifício, ninguém se move, embora o coração descompasse, a colagem das desgraças comuns dariam pintura, rock, jazz, blues?, um olhar de viés, mordida na boca, cabelo atrás das orelhas, vamos lá, não tenha medo, don´t be afraid, palhaço, mostre a sua, fora todas as soluções complexas, vamos comê-las sem piedade, que isso é coisa para covardes, gente encolhida cujo lema é calma, já vai passar.

Revolte-se, sacuda a poeira que insiste em entranhar na pele, não tema a brancura dos fantasmas, o incandescente das musas, beije com vontade, mostre a língua os gostos proibidos, questione o sagrado, mas não esqueça de rezar Salve Rainha pelos pobres diabos cheirando cal na escadaria de ladrilhos. Perambule, sem guardar o nome das ruas, o caminho é sempre um, sempre este que seus pés pisam e não importa o sinal, não aguarde, atravesse no meio dos carros, buzinas, celulares ligados, maquiagens borradas, canções bregas, crianças voltando da escola, adolescentes desesperados, passe, suicida, nobre, altivo, atento, arranha-céu de gente no meio da lata, passe e nem pergunte que horas são. É sempre o Instante, não se engane, nunca voltará, como ela, nunca, morta como nós estamos, onze horas e os astros fazendo das suas, conjunções e tal, não se aflija que pode ocorrer um eclipse e eternizar um final feliz vagabundo, de segunda mão, não se sabe, nunca se sabe e quem sabe essa resposta, tatuada, permanece, escreva na lápide:do not disturb.

Eu não sou daqui, essa música colada, não façamos guerra de coisas baratas, beija os garotos e garotas zumbis, lindos, quero todos os avessos do nome, marinheiro só, cada porto é um porto é um porto, vou ficando, este aqui é um pouco, o resto de mim e o que ficará na próxima partida, talvez, talvez. Eu não vim aqui para ser feliz, óculos escuros para os olhos claros da moça, quem? nem faço idéia, sol dourado, sol, sol, no meio do mundo, aparecemos e nos desencontramos, chore nem um dia, mês inteiro, não se contente, salto do precipício, fraturas invisíveis, memórias de além mar, além túmulo, além, sem correntes pelo corredor, sem estalos na madeira escura do piso dessa casa velha do meu peito, no alarms, no surprises, as músicas tocando, dentro, como um baile maldito de filme B. Reinventar-se, nome, personagem, encenar a peça definitiva onde ninguém escapa ileso, é isso, feche as malas e apague as luzes. The End, nunca, não acredite em tudo que as mães dizem, em tudo que os gurus pregam, reverte a vantagem dos sabidos, que não terão nem vislumbre do Absoluto, que é para todos, mas não qualquer um, faça da sua a sua, na heróica ignorância de iniciante, incitador de revoltas e afins, não aceite, não conceda, não sorria branco demais.