"Que seja doce."(CFA)

sexta-feira, dezembro 31, 2004

Note IV- resume

"Life is so great and so sad" ( Harvey Pekar)

quarta-feira, dezembro 29, 2004

Note III.1- a shade of blue

“I miss the innocence I've known
Playing KISS covers, beautiful and stoned” (Wilco)

Uma música doce é só uma música doce ou uma maneira de parar com a roleta. As mãos no queixo, um revirar infantil de olhos e sabemos: está tudo bem por cinco minutos. E essa perfeição cronometrada é suficiente para não fazer diferença o que eu sei ou o que deixo de saber. Das coisas vividas inteiras, uma ou outra foi inventada ou sonhada ou... uma música doce é só uma música doce ou uma maneira de dar de ombros para o que suspira em museus que ninguém visita. Quem era afinal? Isso importa agora? Três minutos ainda no relógio e estamos calados ouvindo, ouvindo.

Note III- crashes

"oh no, we came to love you all day
these bastards are leavin'
somebody's got to stay.."
(Live)

Arde. Arde. Arde. I´m in a good mood today.
Save my head, save my head, save my....ás duas da tarde, alguém pode me dizer algo definitivo, ás duas da tarde, uma palavra talvez faça todo o sentido. Lançar garrafas ao mar, os pombos no telhado, acenar no alto das sacadas impossíveis, você sabe, eu não acredito em inocência, decência, essas coisas assim ditas com mão no peito: antes ouvir “eu sei que vou te machucar”, por isso eu sorri, estávamos novamente ali na escadaria (teríamos alguma vez saído do lugar?), tarde da noite, por isso te disse “eu sei, conto com isso”.

Atravesso a avenida, tentando enxergar o outro lado (é mais difícil), braços, mãos, pernas, cheiros, as pedras da calçada fora do lugar, as poças, os loucos mendigos, as mães arrastando sacos e filhos, homens de terno, just a name, just a name: vamos ser cruelmente sinceros ou sinceramente cruéis ás duas da tarde, quando você me conta a sua maior fraqueza e confesso que tranco os armários antes de dormir. Cortejamos o perigo como mostra de valentia, esse pavor a ser covarde ou fraco e ao mesmo tempo, este vício de proteger quem nos fere: você sorri o meu sorriso e é assim que quero ser esquecido, um semelhante ás duas da tarde, atravessando essa multidão de corpos no meio de tanta lata.

terça-feira, dezembro 28, 2004

Note II- 28

"Life is never kind Life is never kind
Oh, but I know what will make you smile tonight" (Smiths)

Das vinte e oito chances de dar tudo certo, das vinte e oito palavras que poderiam ter mudado o final do filme, dos vinte e oito modos de contar a mesma história desastrada: só consigo este jeito de matar para sair ileso. Você ouviu o grito no alto da escada, ela teve o riso de quem sabe a partida, ele com olhos maiores que o corpo e que até hoje me engolem, me mastigam quando faz calor demais. Em cima da estante, o cavalo marrom de plástico que alguém (quem? me diz quem?) tirou do lugar: em cima da estante, havia um retrato que não sei onde está, não sei. Vou cantar uma dessas músicas fáceis, vou dançar um desses barulhos, qualquer som serve ou não? Qual o melhor ruído para abafar todos os outros que estremecem o peito ás três da madrugada?

Percorri quatro bares outro dia na procura e encontrei com as mãos no rosto, a barba que você nunca apara e jeito de quem nasceu agoniado: tua inquietação e seus maços vazios. Você gosta de perguntar por já saber que that´s no use, my friend, it´s too late, my friend e somos selvagens demais (eu ou você não sabemos brincar sem tirar sangue). Guardar as palavras nesse bolso esquerdo enquanto você anda na minha frente(não perdeu esta mania de deixar pra trás), eu gosto de olhar, você sabe, vou seguindo, sem pensar na fatalidade de “mais uma vez”, e o relógio pára quando teu carro faz a mesma curva do aterro em que queríamos capotar. Das vinte e oito mortes contadas, marcadas na parede com carvão, guardo aquele nome inventado, violência tolíssima e o desejo que não perde validade.

"(vocês não têm outro rosto
vocês conhecem o melhor caminho do poço
e compram pelo reembolso
a mão que afaga
e a mão que mata)

você não tem nenhum medo
porque não sabe o segredo
que eu não posso lhe contar
e ninguém vai lhe contar
porque é sempre muito tarde
porque está fora de hora
e porque quem samba fica
quem não samba vai-se embora

vocês não têm outro rosto

você não sabe a paisagem
e anda atrás de close-ups
você não fez a viagem
nem pesquisou o mistério
da contagem regressiva
você anda muito viva
então viva viva muito
com o rosto de todo mundo
e quando muito até quando." (Coro misto fotogênico-1970, Torquato Neto)

segunda-feira, dezembro 27, 2004

Note I

Não vou prosseguir, não consigo prosseguir, não posso prosseguir. Vou prosseguir." (Beckett)


Procurar o que estava em outro lugar, tocar de novo a porta para descobrir que não importa. Como um pensamento que ela me disse ter ás duas da manhã: seria muito bom poder conversar com alguém. Você me olha, eu percebo e vou embora mais cedo. Um táxi sempre pára no mesmo lugar da rua suja de Botafogo. Não vamos falar do que descobri em doze meses, nem das coisas que percebi depois de perder a visão: shame on you, shame on you, sentir vergonha por continuar a ver? A crer? A resistir? Não vamos deixar que nos vençam, certo? Vamos berrar, certo? Eles nunca vão conseguir entender como nascemos assim sem precisar fazer esforço: eles estão noutra, nesse caminho estranho que vai dar naquele lugar de sempre, normal. Você se emociona com uma canção de rock, eu sei que esqueci de contar uma dessas verdades fundamentais a meu respeito: been there, done that. Ser estrangeiro não resolveria as questões que insistem em incomodar: os seus fantasmas algum dia foram reais? Sinto que inventei alguém cujo nome se perdeu. Uma luz avermelhada no escuro acende minha insônia e não reclamo mais.

quarta-feira, dezembro 22, 2004

Do Profeta

“Meu coração é um pedaço de papel
riscado
rasgado
queimado
malvado
por aí mesmo despedaçado
e por qualquer lado: minha mão navega
pelos meus olhos, a minha boca se move
é muito diferente prove comigo
esta amarga aguardente. peça com os olhos, peça.”
(trecho de Torquato Neto, no volume {Do lado de dentro} de Torquatália, organizado por Paulo Roberto Pires)

Trilha sonora das manhãs de nossas vidas

"Lá, lalalalalalalá
Lá, lalalalalalalá

Quando a gente tá contente
Tanto faz o quente
Tanto faz o frio
Tanto faz
Que eu me esqueça do meu compromisso
Com isso e aquilo que aconteceu dez minutos atrás
Dez minutos atrás de uma idéia já dão
Pra uma teia de aranha crescer
E prender
Sua vida na cadeia do pensamento
Que de um momento pro outro começa a doer

Lá, lalalalalalalá
Lá, lalalalalalalá

Quando a gente tá contente
Gente é gente, gato é gato
Barata pode ser um barato total
Tudo que você disser deve fazer bem
Nada que você comer deve fazer mal

Quando a gente tá contente
Nem pensar que tá contente
Nem pensar que tá contente a gente quer
Nem pensar a gente quer
A gente quer, a gente quer
A gente quer é viver

Lá, lalalalalalalá
Lá, lalalalalalalá" (Barato Total, na versão de Gal com Nação Zumbi)

terça-feira, dezembro 21, 2004

Guardados.....

música para ouvir: Que emocion, Omara Portuondo
25.11.2001
Durmo entre pêssegos. Ofereço-os, me ofereço. Tenho um sono inteiro. Rezo por doçura e ele não entende. Nome nunca me importa; dou-lhe outro e ele estranharia, por não saber que o nome não lhe torna nem boca, nem nunca, nem (ah, nem mesmo) seu sorriso. Perfume suavemente entranhado nos poros que lhe dizem “boa noite, meu amor” quando suas mãos tapam os ouvidos e ele dorme com uma estrangeira que não sabe lhe querer bem.

08.02.2002
Nos livros que não li, nas músicas ainda desconhecidas, nas palavras que dormem cinderelas em meu peito: nestas coisas que permanecem intocadas, a esperança de estar ilesa.
A madeira pintada de branco disfarça seu traçado; enluarada, quase translúcida, minha pele nada esconde ou atenua: sou um caminho, uma estrada de sangue ansiando por peregrinos.

05.06.2002
Ele quer que lhe diga: há algo quebrado. Não há mais; há a saudade do acidente, há a nostalgia do desastre. Estou inteira e é um novo dia. Isso me assusta. Estar de novo ilesa. Há quem me odeie pelo mal que não fiz. Antes soubesse fazer o quê de mim é esperado. Sou tediosamente aleatória.

Pensamentos são rápidos, por isso murmuro em outra língua. Tento encantá-los, adormecê-los, para que assim escreva. Mas muito se perde, minha pele arde. Se ele me ignorasse talvez, mas ele me observa: o andar, o modo como minhas mãos se comportam, como me movo ou danço...o modo como mergulho em seu sangue, familiarmente absorta. Estou só na penumbra. Lento dia ensaia seus passos, últimos versos. Rezo por todas as noites e elas me engolem de um só golpe, famintas.

01.01.2003
Mais e mais pensamentos me tatuam, passo noites limpando minha pele.
As paredes brancas nunca se calam.

09.02.2003.
Ser prática, ser objeto utilíssimo e sem nome, só uso servil e calado; estar manso é ensaiar morte e não temê-la. Estar manso é escolher armas e sorrir sereno....ah, a doçura de quem sabe muito mais e ignora o aprendido; ah, aquele que escolhe a sabedoria da pele. Seria bom nada relermos de nós mesmos e não nos reconhecendo, sermos passíveis de começo inusitado.

Beije-me para que possa sentir estrelas nascendo em minhas veias. Empreste-me seu rosto...o quê perdi, o quê perdi não lhe tendo, que possa saber ainda não perder (nada sendo meu, há o desafio de estar livre de si mesmo). Suas mãos sendo minhas, quê toque descobrirei, quê novo tato me permitirá saber muito mais do que esta pele desconfia, quê mistérios respirarão meus poros travestidos em sua carne.

11.10.2003
Deixem meu coração inteiro, é o que penso, quando cortam á machadadas a porta do quarto. O corpo é um cão raivoso que se contorce com boca espumando. Não se compadeça, não se comova. Mantenha-se firme como aquelas flores murcham: elas enfrentam sua morte belas, tão belas....... Respiro pesado, com esta força, carrego três pianos (e eles estão desafinados). Inferno é não saber o que seu corpo pede, o que sua alma condena......inferno é estar encolhido, doloridamente, de cabeça para baixo em sua cama.

13.12.2003
Cada consciência que recobro é um dia mais lento.

segunda-feira, dezembro 20, 2004

Heathcliff

O Morro dos Ventos Uivantes Posted by Hello


'May she wake in torment!' he cried, with frightful vehemence, stamping his foot, and groaning in a sudden paroxysm of ungovernable passion. 'Why, she's a liar to the end! Where is she? Not THERE - not in heaven - not perished - where? Oh! you said you cared nothing for my sufferings! And I pray one prayer - I repeat it till my tongue stiffens - Catherine Earnshaw, may you not rest as long as I am living; you said I killed you - haunt me, then! The murdered DO haunt their murderers, I believe. I know that ghosts HAVE wandered on earth. Be with me always - take any form - drive me mad! only DO not leave me in this abyss, where I cannot find you! Oh, God! it is unutterable! I CANNOT live without my life! I CANNOT live without my soul!'

He dashed his head against the knotted trunk; and, lifting up his eyes, howled, not like a man, but like a savage beast being goaded to death with knives and spears.
(Trecho de Wuthering Heights, Emily Bronte)

sexta-feira, dezembro 17, 2004

Los Angeles

(Á Alexandre e Adriano)

"E regaram as flores no deserto E regaram as flores com chuva de insetos" ( O Salto, Rappa)

Os anjos me guardam na multidão. Quando o suor escorre do rosto, quando a língua sente o sal nos lábios, as mãos no alto e um sorriso, um sorriso no refrão. Estes anjos que me acolhem e moram onde nunca fui, estes anjos que me abraçam e comigo esperam a última música de suas vidas: eles me acompanham sem perguntar meu nome. Nós somos jovens, eu sei, quando as horas imprecisas são sentidas pelos tons de azul.
Alguns me beijam com desejo tão puro que me faz cócegas, outros tem o frescor inocente que julgo ter quando gargalho. A noite se esvai veloz como nossas vontades, não sabemos quando seremos chamados de novo á arena, para mostrar o vermelho de nosso sangue, mas brincamos sujos entre tantos que fingem não saber do novo que se aproxima. Como seria? O que nos traria de milagre? Sagrada é esta vontade de estarmos presentes, a palavra que nos dispensamos quando nos reconhecemos para nunca mais. Antes a pureza de um instante único do que o teatro ensaiado, filmes que lembramos por atuações descaradas.
Os anjos não dizem que não mentem, não fazem vazios juramentos no quarto escuro e se em algum momento se perdem, é com a ingenuidade de quem se pensa a salvo de si mesmo. Abraçam-me com alegria infantil, como se me reencontrassem, como se suas infâncias tivessem meu rosto na memória. Esvaziamo-nos de todo desamparo cuja sombra nos ameaça o sono, trazem-me junto ao peito como se soubessem que minha fragilidade está na incoerência de arriscar tudo. Com eles, esgarço o que sei de mim, como um casaco que por estranha razão deve abrigar a todos. Nos divinizamos sem perceber quando as luzes brincam, quando as pulsações aumentam, nossa corrente lateja como se fizéssemos parte de um condutor único de eletricidade.
Com estes anjos , divido o que penso como vida. Esqueço os desvãos, clareio minhas visagens e descubro um mundo antigo, que só raramente percebo, em crises de lucidez. Eles, anjos, me levam para casa, como guardiões insuspeitos do que em mim julgo perdido e que se mantém, rigorosamente intacto.

quinta-feira, dezembro 16, 2004

"Entre o meu ser e o ser alheio, a linha de fronteira se rompeu" (W.S.)

(code46) Posted by Hello

Da Nobreza: "O heroísmo do cavaleiro não está nos seus feitos, está nas suas disposições de alma." (San Tiago Dantas)


terça-feira, dezembro 14, 2004

"A memória é uma ilha de edição"(Waly Salomão)

"Ah! Eu usei todos os sentidos
Só não lavei as mãos
E ‚ é por isso que eu me sinto cada vez mais limpo
Cada vez mais limpo" (Daquilo que eu sei, Ivan Lins)

domingo, dezembro 12, 2004

Mais uma dose

Ás vezes, todas as bocas dizem sim. Embora pergunte em que elas concordam, elas sorriem e se escancaram e dizem sim, sim, sim. Cuide-se quando nada fizer sentido, porque nada faz sentido na noite quando piscamos os olhos. Teus traços finos, teu gosto comum, tudo se confunde no meu bolso com o cigarro que acendo, com a saudade de um corpo que se recuse a ser carne. Veja bem dentro quando não restar mais ninguém real nesta sala repleta, quando todos gritarem o refrão, quando eu levantar as mãos como se enfim livre, veja bem dentro dessas miragens e sinta o que ainda verdadeiro dentro do que perdemos. Os nomes se acumulam e confundo-me quando chamamos nuvens, nuvens, não é á toa que chove torrencialmente sob nossos pés: uma mão desconhecida me resguarda da multidão.

E as afirmativas continuam quando migramos, feito pássaros sem rumo, aprendendo entre quedas, você sabe o quanto grito sem que me ouçam, você desconfia o quanto sei de teus passos nesta rua que pensamos desconhecida? Trate-a como se nunca tivesse existido. Saiba dizer que está tudo bem, arrisque-se um pouco mais por isso que chamam milagre e identifico como destino. Trate-a como um bicho que se deixa domesticar por cansaço. Não confesse fatos, histórias, a página em branco permanece para que o nome se escreva, quase definitivo. Eu que não rezo, peço que me recusem, que digam não, não, não, essas bocas convidativas que não sabem outro caminho. Porque estou morta e tão incandescente, como um fantasma que se sabe mistério, como um corpo que se sabe perecível carne.

Nas esquinas, os papéis de jornais são bem-vindos, pois aquecem. Caminho na estrada, com a algazarra de desconhecidos ao fundo. Eles não contam o mal que me fazem como se você pudesse detalhar o mapa da danação. Esperneio sem que percebam, finjo dramas que fazem rir, sou mais triste quando minhas mãos procuram a porta deste abrigo, trancada para quem ainda se julga puro demais. Perdi o tesouro, porque nada consigo trazer comigo. Estou tão nua quanto vim ao mundo, mas não se compadeça, o desejo é uma capa que nos esconde a pele machucada.

As bocas nunca descansam quando demora a amanhecer. Quem sou, senão esta que gargalha despedaçada na janela? Como se a queda não permitisse a reconstituição da cena do crime, continuamos. O sabor da covardia é doce.

quinta-feira, dezembro 09, 2004

"You mustn't give your heart to a wild thing" --Holly.

Posted by Hello
"Moon River, wider than a mile,
I'm crossing you in style some day.
Oh, dream maker, you heart breaker,
wherever you're going I'm going your way.
Two drifters off to see the world.
There's such a lot of world to see.
We're after the same rainbow's end--
waiting 'round the bend,
my huckleberry friend,
Moon River and me." (Moon River, fundamental na voz de Audrey Hepburn em Breakfast at Tiffany´s- clique no nome e ouça)

terça-feira, dezembro 07, 2004

Alguma Arquelogia Sentimental

(Para D.C., que ainda está acordado.)

“Itabira é apenas uma fotografia na parede./Mas como dói”.(Drummond)


Ah, essa busca pelo definitivo como se somente este salvasse. Não me peça arroubos, gestos românticos, mentiras inventadas para o seu deleite, antes espere, faça uma ligeira reverência pelo que ainda sobrevive em mim, intacto, não me pergunte por estes anos, contente-se com o som do meu riso que ainda, ainda, você reconhece das escadarias.

Como bichos satisfeitos, deitávamos ao sol nas manhãs muito frias, quando meu irmão e eu nos divertíamos com o ar feito fumaça saindo das bocas, quando ainda escondia bebida no banheiro para os costumeiros debates literários, quando passava meus dedos entre seus cabelos, com a inocência culpada de quem sabe que um dia sentirá desejo. Éramos temíveis quando subíamos a rua, juntos, fingindo maldade, apaixonados por tantos, sofrendo com a falta de precisão dos sentidos, prometendo conquistas e desafios no dia seguinte. Mas não lembrávamos, entretidos com um novo som, rosto, truque aprendido, pecado esperando na sombra do salão de uma festa qualquer. Isso foi até a primeira perda, a primeira pedrada, a estupidez de uma partida que não esperávamos: ainda consigo escutar uma risada perdida nas ladeiras da cidade, quando a visito, sei que você acredita. Muito de nós espera, como poeira cobrindo os móveis, como se nada, como se nosso retorno pudesse desencantar a roda do tempo.

Nossos esconderijos, nossas fugas á tarde, quando cantávamos o mesmo refrão por horas, líamos apenas o que nos interessava nos jornais (era tão pouco), alheios ao mundo que começava a nos ameaçar com a desconstrução cínica de nossas fantasias, prometíamos valentia, continuarmos indomesticáveis ao crescer, mas crescíamos irremediavelmente e por vezes, bebíamos um pouco mais e seguíamos a linha do trem por horas a fio, inventando delírios. Cultivávamos o gosto pelo absurdo, você gargalha quando lembra da vez em que todos nós vestimos roupa de praia, em pleno inverno e fomos para a rua, brincando no meio dos poucos carros que passavam, posando nos sinais de trânsito, apoiando o corpo nos postes. Lembro do horror do pai ao ver os carros enfileirados, á espera, na porta de casa, o cuidado que não tínhamos, a sinceridade quase áspera com que vivíamos juntos, que nos tornava mais cúmplices por sabermos do diferente em cada um, você gosta de lembrar da permissão que me foi dada para que pudesse contar nossos paradeiros, contanto que minha mãe ficasse calada para as outras, que apenas suspeitavam do que aprontávamos. As muitas tardes e madrugadas geladas cortadas por nossos gritos de guerra. Ninguém se divertia como nós, você gosta de acreditar. Eu apenas quero que alguém ainda consiga ser tão jovem como fomos.

Balançamos os pés em cima da ponte, você toca meu braço, minha cabeça em teu ombro, ah se pudéssemos, se sentíssemos, seria perfeito, você guardaria estes tesouros comigo e quem sabe nos salvaríamos do que lentamente nos consome, não, não é nada disso, por familiaridade conquistada sem esforço, quietos, permanecemos, nos olhando com uma serenidade que permite que você beije meu cabelo enquanto brinco com seus dedos entre os meus. Antes, com espanto, pergunto o motivo de continuarmos os mesmos, “não”, você me corrige, “você continua...”, não termina, ao invés, lembra da mania que tínhamos quando queríamos dividir silêncio, “lembra ?”, lembro: “finge que a gente não morre nunca”, e por mágica antiga, somos imortais na tarde da cidade laranja.

segunda-feira, dezembro 06, 2004

Tua mão brilha em meu ombro, molhada de suor. Sinto gosto de terra na boca, mas sorrio. Olhamos para cima, você brinca ao apontar um pouco de céu entre as árvores, alguém ri de alguma coisa que não consigo entender preocupado que estou em manter algum ar nos pulmões, seu rosto tem um quê de moleque quando pisca o olho e aponta um atalho, você me faz cúmplice sem saber que é exatamente isso, precisamente isso que preciso ao subir. Eu ainda penso nas palavras que usaria para descrever este jeito de segurar as coisas com força, tua mão em meu ombro me conforta sem que precise olhar para trás. Você está atento quando estico meu corpo para o próximo passo em direção ao alto da colina. Mantenho-me em silêncio, consciente do esforço do músculo, do fascínio de ser concreto, tornar a ser carne e movimento. Esqueço-me dos antigos rangidos da máquina dentro do peito. Retorno como se começasse a nascer do escuro em que me mantive, como certos bichos que dormem quando seco demais. Atravessei um deserto dentro, não confesso, você desconfia? suspeita? pressente? Mas aceito o peso de tua mão em meu ombro como a de um companheiro que me reapresenta o mundo e diz: bem-vindo.

Ophelia, John Everett Millais Posted by Hello

"o amor, ah, o amor: eu quero porque quero da vida" (Oswald de Andrade)

“...ele me olhava triste. eu não suportava seu olhar triste a lembrar-me das vezes todas que o tinha procurado inutilmente pelas ruas sem encontrá-lo. agora que o encontrava já não o procurava. e um encontro sem procura era tão inútil quanto uma procura sem encontro. detalhei meus movimentos para que não o atemorizassem. e novamente olhei. ah se conseguisse. mas sempre será preciso o pão dessa agonia. e disse:
- não farei um movimento para afastar os cadáveres que juncam as águas do lago não farei um movimento para conduzir o barco em direção ao sul pois sei que existem ventos e que os ventos sopram sei que se uma folha bater de leve no meu rosto eu a esmagarei feito uma mosca e sei que se houver cirandas pelas margens eu matarei as crianças sei do meu ser de faca sei do meu aprendizado de torpezas sei do que há no fundo desse lago e sei que você não o tocará porque a superfície não o revela e será mais fácil para o teu gesto afastar os cadáveres que juncam as águas do teu próprio lago e movimentar o barco a favor do vento e acolher as folhas que baterem em teu rosto e ouvir as cirandas e sorrir para as crianças paradas nos beirais sei da tua forma de chegar à morte sei da minha forma de chegar à vida e sei que não te tocarei no campo de trigo atrás da tua face e sei que não me tocarás na ponta de faca atrás da minha face e sei do nosso mútuo assassinato e sei de nossa insaciável fome de carne humana porém te digo que este meu ser inaparente que este meu ser é de faca e não de flor.
não foi difícil. a mulher calou-se repentinamente espantada. e tenho certeza que a matei naquele instante porque um pouco mais tarde ouvimos o sangue gotejar pelas escadas. mas eu não queria o mal. apenas não encontraria outra vez o mesmo pôr-do-sol na mesma tarde assim como a minha face não seria jamais a dele."

(Caio Fernando Abreu)

quarta-feira, dezembro 01, 2004

"Escrevo para não gritar" *

(* frase de Caio Fernando Abreu no conto Marinheiro)

“quando soltaram os cachorros loucos
eu estava fazendo chá
de ervas do campo
e de repente o espanto
tremendo a chaleira
e bombeando medo

larguei as ervas e danado
precipitei-me à janela
de onde vi
enormes matilhas
com olhos cheios de negra espuma

a espuma invadia a rua
e abraçava postes, que caíam
cheios de óleo e náusea
engolia as pessoas
que alucinadas
enchiam o ar de berros

depois os cachorros loucos foram embora
eu voltei ao meu chá
e lá fora a solidão
e uma flor quase despercebida ”
(Henrique do Valle: Uma Flor num Buraco de Calçada)