"Que seja doce."(CFA)

sexta-feira, dezembro 17, 2004

Los Angeles

(Á Alexandre e Adriano)

"E regaram as flores no deserto E regaram as flores com chuva de insetos" ( O Salto, Rappa)

Os anjos me guardam na multidão. Quando o suor escorre do rosto, quando a língua sente o sal nos lábios, as mãos no alto e um sorriso, um sorriso no refrão. Estes anjos que me acolhem e moram onde nunca fui, estes anjos que me abraçam e comigo esperam a última música de suas vidas: eles me acompanham sem perguntar meu nome. Nós somos jovens, eu sei, quando as horas imprecisas são sentidas pelos tons de azul.
Alguns me beijam com desejo tão puro que me faz cócegas, outros tem o frescor inocente que julgo ter quando gargalho. A noite se esvai veloz como nossas vontades, não sabemos quando seremos chamados de novo á arena, para mostrar o vermelho de nosso sangue, mas brincamos sujos entre tantos que fingem não saber do novo que se aproxima. Como seria? O que nos traria de milagre? Sagrada é esta vontade de estarmos presentes, a palavra que nos dispensamos quando nos reconhecemos para nunca mais. Antes a pureza de um instante único do que o teatro ensaiado, filmes que lembramos por atuações descaradas.
Os anjos não dizem que não mentem, não fazem vazios juramentos no quarto escuro e se em algum momento se perdem, é com a ingenuidade de quem se pensa a salvo de si mesmo. Abraçam-me com alegria infantil, como se me reencontrassem, como se suas infâncias tivessem meu rosto na memória. Esvaziamo-nos de todo desamparo cuja sombra nos ameaça o sono, trazem-me junto ao peito como se soubessem que minha fragilidade está na incoerência de arriscar tudo. Com eles, esgarço o que sei de mim, como um casaco que por estranha razão deve abrigar a todos. Nos divinizamos sem perceber quando as luzes brincam, quando as pulsações aumentam, nossa corrente lateja como se fizéssemos parte de um condutor único de eletricidade.
Com estes anjos , divido o que penso como vida. Esqueço os desvãos, clareio minhas visagens e descubro um mundo antigo, que só raramente percebo, em crises de lucidez. Eles, anjos, me levam para casa, como guardiões insuspeitos do que em mim julgo perdido e que se mantém, rigorosamente intacto.