"o amor, ah, o amor: eu quero porque quero da vida" (Oswald de Andrade)
“...ele me olhava triste. eu não suportava seu olhar triste a lembrar-me das vezes todas que o tinha procurado inutilmente pelas ruas sem encontrá-lo. agora que o encontrava já não o procurava. e um encontro sem procura era tão inútil quanto uma procura sem encontro. detalhei meus movimentos para que não o atemorizassem. e novamente olhei. ah se conseguisse. mas sempre será preciso o pão dessa agonia. e disse:
- não farei um movimento para afastar os cadáveres que juncam as águas do lago não farei um movimento para conduzir o barco em direção ao sul pois sei que existem ventos e que os ventos sopram sei que se uma folha bater de leve no meu rosto eu a esmagarei feito uma mosca e sei que se houver cirandas pelas margens eu matarei as crianças sei do meu ser de faca sei do meu aprendizado de torpezas sei do que há no fundo desse lago e sei que você não o tocará porque a superfície não o revela e será mais fácil para o teu gesto afastar os cadáveres que juncam as águas do teu próprio lago e movimentar o barco a favor do vento e acolher as folhas que baterem em teu rosto e ouvir as cirandas e sorrir para as crianças paradas nos beirais sei da tua forma de chegar à morte sei da minha forma de chegar à vida e sei que não te tocarei no campo de trigo atrás da tua face e sei que não me tocarás na ponta de faca atrás da minha face e sei do nosso mútuo assassinato e sei de nossa insaciável fome de carne humana porém te digo que este meu ser inaparente que este meu ser é de faca e não de flor.
não foi difícil. a mulher calou-se repentinamente espantada. e tenho certeza que a matei naquele instante porque um pouco mais tarde ouvimos o sangue gotejar pelas escadas. mas eu não queria o mal. apenas não encontraria outra vez o mesmo pôr-do-sol na mesma tarde assim como a minha face não seria jamais a dele."
(Caio Fernando Abreu)
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