London Calling
(trechinho final de London Calling que terminei ontem ás cinco da manhã- quando puder transcrevo o conto inteiro para cá)
Ouço o som da rua, do ar condicionado ligado, do seu sono: estes ruídos são minha trilha sonora. Invejo o sono profundo que desconheço, toco sua pele como quem está livre para conhecer o mundo do qual foi expulso. Conheço seu corpo com intimidade conquistada por prática de adivinhação, mas não ouso acordá-lo: o indefeso da sua carne que sonha me fascina. Você tenta entender minhas vontades sem saber que tenho medo. Penso se você se ressente do que nunca poderia ter lhe confessado há três noites atrás.
- Você me dá enjôo.
Como poderia explicar que o desejo que sinto é uma persistente sensação de perigo? Como se brincasse com álcool perto do fogo, engolisse chumbinho como se fosse confeito, desafiasse meu equilíbrio no parapeito da janela? Não, fico calado e tento conter a náusea quando sinto seus braços. Em algum ponto, o extremo desejo me causa repulsa: seu corpo é o meu mal, meu alho, minha cruz, minha estaca de madeira, minha bala de prata. Você, pouco inocente, me abraça e quero gritar um uivo único, manter-te longe para estar a salvo de sentir demais. Mas teu cheiro se entranha em minha pele, pegajoso, tão fácil, e minhas mãos tremem, buscando seu rosto (mas não alcançam). Em alguns dias, bebo para esquecer do que sei. A verdade é a única coisa que não posso lhe dar, repito três vezes, bíblico e insone. Esta verdade que invento para que você me perdoe a inocência com a qual vivi até entender que nunca poderia ter sido. Inocente, digo. Mas a incoerência do meu afeto não permite sinceridade.
Não tenho nada além do que carrego dentro do meu peito. Nos meus bolsos, cabem os fantasmas dos versos que não fiz. Ás vezes, quero ouvir uma canção de amor definitiva para aliviar a solidão. Você não acredita em eternidade e conta sua última descoberta metafísica. Desconfio que não sou tudo que digo, nem sei o nome da verdadeira fé que professo. Parece uma cegueira estranha, como se só pudesse ver o que ninguém repara e a vida fosse uma espécie de filme distante, passo meses a fingir que não compreendo.
Na rua, salto poças enquanto finjo não ver seu sorriso: eu sou o que resta da minha linhagem, a última coisa que preciso é isso que você me oferece. Minto com desfaçatez, ignorando a garganta machucada, como uma dessas pessoas que conheço: elas parecem a tal ponto irreais que desconfio não serem concretas, sento-me na mesa esperando que se desfaçam com um golpe de ar. Vou me agarrando ao meu desconforto porque é a única sensação sincera no espaço entre as frases. Na encenação, finjo um teatro kabuki que não entendem, teço a trama mais ridícula, quase me compadeço. A dor branda que ostentam, bem alimentada por chopps e conversas vazias e atmosfera cool, não me sensibiliza. Existe sofrimento nas sombras das ruas bem iluminadas do Leblon e elas se alimentam do lixo nos sacos pretos, resistem ao abandono e ao desprezo dos bem-nascidos. Quero uma saída comum, você não sabe, mas ignoro direção. Não faz sentido o que tenho feito: dia após dia após dia, leio os jornais esperando um sinal.
- Quero o que vem depois, você entende?
- Melhor mesmo é não tentar entender por teoria, mas pelos sentidos
- Eu não quero teu amor de cão.
- Lobo
- Que seja, eu não quero.
- Mas eu quero.
- O quê?
- Ver o que vem depois.
- Você me dá enjôo.
Como poderia explicar que o desejo que sinto é uma persistente sensação de perigo? Como se brincasse com álcool perto do fogo, engolisse chumbinho como se fosse confeito, desafiasse meu equilíbrio no parapeito da janela? Não, fico calado e tento conter a náusea quando sinto seus braços. Em algum ponto, o extremo desejo me causa repulsa: seu corpo é o meu mal, meu alho, minha cruz, minha estaca de madeira, minha bala de prata. Você, pouco inocente, me abraça e quero gritar um uivo único, manter-te longe para estar a salvo de sentir demais. Mas teu cheiro se entranha em minha pele, pegajoso, tão fácil, e minhas mãos tremem, buscando seu rosto (mas não alcançam). Em alguns dias, bebo para esquecer do que sei. A verdade é a única coisa que não posso lhe dar, repito três vezes, bíblico e insone. Esta verdade que invento para que você me perdoe a inocência com a qual vivi até entender que nunca poderia ter sido. Inocente, digo. Mas a incoerência do meu afeto não permite sinceridade.
Não tenho nada além do que carrego dentro do meu peito. Nos meus bolsos, cabem os fantasmas dos versos que não fiz. Ás vezes, quero ouvir uma canção de amor definitiva para aliviar a solidão. Você não acredita em eternidade e conta sua última descoberta metafísica. Desconfio que não sou tudo que digo, nem sei o nome da verdadeira fé que professo. Parece uma cegueira estranha, como se só pudesse ver o que ninguém repara e a vida fosse uma espécie de filme distante, passo meses a fingir que não compreendo.
Na rua, salto poças enquanto finjo não ver seu sorriso: eu sou o que resta da minha linhagem, a última coisa que preciso é isso que você me oferece. Minto com desfaçatez, ignorando a garganta machucada, como uma dessas pessoas que conheço: elas parecem a tal ponto irreais que desconfio não serem concretas, sento-me na mesa esperando que se desfaçam com um golpe de ar. Vou me agarrando ao meu desconforto porque é a única sensação sincera no espaço entre as frases. Na encenação, finjo um teatro kabuki que não entendem, teço a trama mais ridícula, quase me compadeço. A dor branda que ostentam, bem alimentada por chopps e conversas vazias e atmosfera cool, não me sensibiliza. Existe sofrimento nas sombras das ruas bem iluminadas do Leblon e elas se alimentam do lixo nos sacos pretos, resistem ao abandono e ao desprezo dos bem-nascidos. Quero uma saída comum, você não sabe, mas ignoro direção. Não faz sentido o que tenho feito: dia após dia após dia, leio os jornais esperando um sinal.
- Quero o que vem depois, você entende?
- Melhor mesmo é não tentar entender por teoria, mas pelos sentidos
- Eu não quero teu amor de cão.
- Lobo
- Que seja, eu não quero.
- Mas eu quero.
- O quê?
- Ver o que vem depois.
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