Canção de despedida para Pedro
"É para você que escrevo, hipócrita." (Ana C.)
"Tentei, tentamos." (Caio Fernando Abreu, Anotações de um amor urbano)
"And true love waits
In haunted attics
And true love lives
On lollipops and crisps
Just don't leave
Don't leave." (True Love Waits, Radiohead)
Não há nada a fazer. O dia amanheceu irremediavelmente, preciso voltar para casa. Não, Pedro, não leva a lugar algum estas juras que insistimos, faço as malas, mas não se esqueça:
Felicidade dá paúra, Pedro, em quase todos que a gente conhece. Não confesse o que fizemos, não diga o meu nome, não invente um alter-ego, não escreva nossa história: me deixe morrer, nos deixe morrer, pelo menos uma vez, me dê razão. Não garanta que amanhã ou depois de amanhã, ou um dia qualquer em um mês luminoso da cidade laranja, nos encontraremos, com sorrisos amenos e intenções serenas. O inferno é a sobriedade, Pedro, não me peça civis gestos de indiferença. Gentileza, talvez, gentileza anônima de quem não se reconhece mais. Você perguntava até quando? até quando? no meu ouvido, olhando dentro de mim, talvez, de nós dois, aflito, suado, até quando? até quando?, tínhamos o mesmo assombro ardido, respondia tantas vezes, você conseguia me ouvir, Pedro, onde você estava, conseguia ouvir minha voz, sentir a pele azul embaixo da pele que suava junto com a sua, conseguia me ouvir dizer? Amor roendo a tudo, sem pressa, mas com uma fome que não perdoava a nada, varando tardes, madrugadas, noites inteiras, prometendo, queimando, dois cometas quando se chocam, Pedro, o quê acontece, se acontece, é possível? Eu não entendo de estrela alguma, além da minha, não sei explicar qualquer fenômeno além dos meus sentidos.
Não é para qualquer um, talvez, permita que faça as malas, Pedro, no escuro, como gosto de andar ás vezes, tateando e redescobrindo a identidade das coisas além da visão. Deixe que abandone o incontornável ponto que chegamos, passei a noite em claro, me despedindo de seu corpo enquanto você dormia, relendo cartas que guardo, cantando canções até enrouquecer. Não assustei os vizinhos nem acordei você, Pedro, que me ensinava os segredos do seu sono e pedia que interpretasse sonhos quase todas as manhãs. Não conte o que eu sei, não me descreva os modos, não me aponte na rua, não me ofereça uma bebida, não acene da janela.
Você precisa aprender a não se importar com a ilusão do futuro, não queira controlar o impossível, não caçe o próprio rabo, Pedro, como um cachorro tolo. Lembre que o lobo sou eu, eu sei que o seu sorriso, para muitos, é o melhor de você, mas sinceramente, meu amor, o melhor de você não está fora, não, eu vi o melhor de você, Pedro e era luminoso e intocável. Não deixe que eles saibam demais, não se apegue ao que já foi, não reinvente o passado, faça o que tiver que fazer, mas não pronuncie o meu nome secreto, nem meu medo de sangue. Finja que não aconteceu até o dia em que finalmente estarei enterrada, esta menina com os joelhos ralados. Até dela, me despeço, Pedro, depois de você, ela cresceu sem crescer, entenda: como a outra que abandonei para que ela brincasse, era preciso uma outra pessoa a carregar meu rosto.
Quê interessa se dói? Tem quem se gaste nessas quentes noites de boca em boca, como um beija-flor doente, mas não me importo com eles, fecho meus olhos e sorrio e agradeço e digo estas frases feitas que achávamos graça: eles ainda acreditam em mim como nunca poderia, Pedro, como não deveriam. Nossos super-poderes, ah, nossos super-poderes, meu bem, de onde vieram e qual o motivo? O pior vilão dentro, com suas ofensas terríveis, suas insônias culpadas: não quero saber de tecer mágoa, desalento, estes mares salgados na alma, com suas ressacas constantes, afogando as antigas musas, adoecendo a carne, maltratando o corpo. Em ser herói, em nos imaginarmos no filme, perdemos o foco, Pedro, do essencial, do belo, do verdadeiro, do bom? Faço as malas, fecho caixas, mudo de casa sem mudar de país. Não, não volto para as montanhas carcomidas que me guardam distantes, alguém me disse que o desafio é mesmo esse, de resistir, manter as raízes, permanecer.
Deixe-me morrer, deixe-nos morrer, não se agarre aos restos do naufrágio: o que me encanta é a intensidade mesmo efêmera, a gravidade profunda com a qual nos desfrutamos, não se entristeça, Pedro, não tínhamos mesmo opção, jovens e velhos, fortes e vacilantes, corajosos e tão covardes, o quê poderíamos ter feito, quem nos socorreria? Não maldiga o destino, nem prometa para si mesmo não deixar acontecer de novo: ah, Pedro, Pedro, meu querido, meu amor, foi um milagre termos chegado tão longe, nesse mundo, logo nesse mundo, talvez em outro planeta, tivéssemos chance. Mas o tempo, o tempo nos apagará gentilmente e passaremos, passaremos, me comove encontrar um casal na rua, Pedro e olhar nos olhos deles a mesma vontade, não, sei que não é a mesma, nunca será a mesma, mas existe a possibilidade, pelo menos, isso, a esperança de uma possibilidade de estarmos continuados nesses desconhecidos casais, ah, Pedro, ainda nos beijamos nesses outros que nem sabem de nós e isso é um alívio e uma verdade.
Seja o que for, não revele rigorosamente nada, nem rastro, nem lugar, nem uma palavra, se possível, faça como eu e pergunte: ahn?, aos que insistirem em esmiuçar nossos detalhes, não deixe que nos saqueiem, jogue no poço, amordace a memória até que ela fique mansa, ensinada e não volte mais à porta dessa casa, permita que ela se acabe, não visite as ruínas, lembre-se que sou eu quem gosta de suspirar o antigo como se tivesse perdido algo que desconhece, melhor, não lembre, melhor assim, tornar a ser nada é uma espécie de libertação, meu bem, não se assuste, haverão outras lembranças a serem vividas e colocadas no lugar. Deixo a porta aberta para que o vento derrube o que ainda de pé, embaralhe os papéis na mesa, ah, os papéis na mesa, Pedro, esvazio esse quarto, o número, em vermelho, na porta, sorrindo ainda, a sabedoria das coisas imutáveis. Um amigo escreveu que escritores medíocres quando não sabem terminar usam reticências, Pedro, não estou me dizendo medíocre, pelo contrário, minha arrogância nunca o permitiria, mas não ouso terminar em um ponto seco, cru como um golpe de faca, apunhalando o espaço indefeso entre nós dois, prefiro tentar tecer um silêncio, um silêncio espesso que cresce e crescerá entre nós, nos separando até que você não mais me veja, minha vista também não lhe alcance, e um dia , um dia....
Felicidade dá paúra, Pedro, em quase todos que a gente conhece. Não confesse o que fizemos, não diga o meu nome, não invente um alter-ego, não escreva nossa história: me deixe morrer, nos deixe morrer, pelo menos uma vez, me dê razão. Não garanta que amanhã ou depois de amanhã, ou um dia qualquer em um mês luminoso da cidade laranja, nos encontraremos, com sorrisos amenos e intenções serenas. O inferno é a sobriedade, Pedro, não me peça civis gestos de indiferença. Gentileza, talvez, gentileza anônima de quem não se reconhece mais. Você perguntava até quando? até quando? no meu ouvido, olhando dentro de mim, talvez, de nós dois, aflito, suado, até quando? até quando?, tínhamos o mesmo assombro ardido, respondia tantas vezes, você conseguia me ouvir, Pedro, onde você estava, conseguia ouvir minha voz, sentir a pele azul embaixo da pele que suava junto com a sua, conseguia me ouvir dizer? Amor roendo a tudo, sem pressa, mas com uma fome que não perdoava a nada, varando tardes, madrugadas, noites inteiras, prometendo, queimando, dois cometas quando se chocam, Pedro, o quê acontece, se acontece, é possível? Eu não entendo de estrela alguma, além da minha, não sei explicar qualquer fenômeno além dos meus sentidos.
Não é para qualquer um, talvez, permita que faça as malas, Pedro, no escuro, como gosto de andar ás vezes, tateando e redescobrindo a identidade das coisas além da visão. Deixe que abandone o incontornável ponto que chegamos, passei a noite em claro, me despedindo de seu corpo enquanto você dormia, relendo cartas que guardo, cantando canções até enrouquecer. Não assustei os vizinhos nem acordei você, Pedro, que me ensinava os segredos do seu sono e pedia que interpretasse sonhos quase todas as manhãs. Não conte o que eu sei, não me descreva os modos, não me aponte na rua, não me ofereça uma bebida, não acene da janela.
Você precisa aprender a não se importar com a ilusão do futuro, não queira controlar o impossível, não caçe o próprio rabo, Pedro, como um cachorro tolo. Lembre que o lobo sou eu, eu sei que o seu sorriso, para muitos, é o melhor de você, mas sinceramente, meu amor, o melhor de você não está fora, não, eu vi o melhor de você, Pedro e era luminoso e intocável. Não deixe que eles saibam demais, não se apegue ao que já foi, não reinvente o passado, faça o que tiver que fazer, mas não pronuncie o meu nome secreto, nem meu medo de sangue. Finja que não aconteceu até o dia em que finalmente estarei enterrada, esta menina com os joelhos ralados. Até dela, me despeço, Pedro, depois de você, ela cresceu sem crescer, entenda: como a outra que abandonei para que ela brincasse, era preciso uma outra pessoa a carregar meu rosto.
Quê interessa se dói? Tem quem se gaste nessas quentes noites de boca em boca, como um beija-flor doente, mas não me importo com eles, fecho meus olhos e sorrio e agradeço e digo estas frases feitas que achávamos graça: eles ainda acreditam em mim como nunca poderia, Pedro, como não deveriam. Nossos super-poderes, ah, nossos super-poderes, meu bem, de onde vieram e qual o motivo? O pior vilão dentro, com suas ofensas terríveis, suas insônias culpadas: não quero saber de tecer mágoa, desalento, estes mares salgados na alma, com suas ressacas constantes, afogando as antigas musas, adoecendo a carne, maltratando o corpo. Em ser herói, em nos imaginarmos no filme, perdemos o foco, Pedro, do essencial, do belo, do verdadeiro, do bom? Faço as malas, fecho caixas, mudo de casa sem mudar de país. Não, não volto para as montanhas carcomidas que me guardam distantes, alguém me disse que o desafio é mesmo esse, de resistir, manter as raízes, permanecer.
Deixe-me morrer, deixe-nos morrer, não se agarre aos restos do naufrágio: o que me encanta é a intensidade mesmo efêmera, a gravidade profunda com a qual nos desfrutamos, não se entristeça, Pedro, não tínhamos mesmo opção, jovens e velhos, fortes e vacilantes, corajosos e tão covardes, o quê poderíamos ter feito, quem nos socorreria? Não maldiga o destino, nem prometa para si mesmo não deixar acontecer de novo: ah, Pedro, Pedro, meu querido, meu amor, foi um milagre termos chegado tão longe, nesse mundo, logo nesse mundo, talvez em outro planeta, tivéssemos chance. Mas o tempo, o tempo nos apagará gentilmente e passaremos, passaremos, me comove encontrar um casal na rua, Pedro e olhar nos olhos deles a mesma vontade, não, sei que não é a mesma, nunca será a mesma, mas existe a possibilidade, pelo menos, isso, a esperança de uma possibilidade de estarmos continuados nesses desconhecidos casais, ah, Pedro, ainda nos beijamos nesses outros que nem sabem de nós e isso é um alívio e uma verdade.
Seja o que for, não revele rigorosamente nada, nem rastro, nem lugar, nem uma palavra, se possível, faça como eu e pergunte: ahn?, aos que insistirem em esmiuçar nossos detalhes, não deixe que nos saqueiem, jogue no poço, amordace a memória até que ela fique mansa, ensinada e não volte mais à porta dessa casa, permita que ela se acabe, não visite as ruínas, lembre-se que sou eu quem gosta de suspirar o antigo como se tivesse perdido algo que desconhece, melhor, não lembre, melhor assim, tornar a ser nada é uma espécie de libertação, meu bem, não se assuste, haverão outras lembranças a serem vividas e colocadas no lugar. Deixo a porta aberta para que o vento derrube o que ainda de pé, embaralhe os papéis na mesa, ah, os papéis na mesa, Pedro, esvazio esse quarto, o número, em vermelho, na porta, sorrindo ainda, a sabedoria das coisas imutáveis. Um amigo escreveu que escritores medíocres quando não sabem terminar usam reticências, Pedro, não estou me dizendo medíocre, pelo contrário, minha arrogância nunca o permitiria, mas não ouso terminar em um ponto seco, cru como um golpe de faca, apunhalando o espaço indefeso entre nós dois, prefiro tentar tecer um silêncio, um silêncio espesso que cresce e crescerá entre nós, nos separando até que você não mais me veja, minha vista também não lhe alcance, e um dia , um dia....
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