Alguma Arquelogia Sentimental
(Para D.C., que ainda está acordado.)
“Itabira é apenas uma fotografia na parede./Mas como dói”.(Drummond)
Ah, essa busca pelo definitivo como se somente este salvasse. Não me peça arroubos, gestos românticos, mentiras inventadas para o seu deleite, antes espere, faça uma ligeira reverência pelo que ainda sobrevive em mim, intacto, não me pergunte por estes anos, contente-se com o som do meu riso que ainda, ainda, você reconhece das escadarias.
Como bichos satisfeitos, deitávamos ao sol nas manhãs muito frias, quando meu irmão e eu nos divertíamos com o ar feito fumaça saindo das bocas, quando ainda escondia bebida no banheiro para os costumeiros debates literários, quando passava meus dedos entre seus cabelos, com a inocência culpada de quem sabe que um dia sentirá desejo. Éramos temíveis quando subíamos a rua, juntos, fingindo maldade, apaixonados por tantos, sofrendo com a falta de precisão dos sentidos, prometendo conquistas e desafios no dia seguinte. Mas não lembrávamos, entretidos com um novo som, rosto, truque aprendido, pecado esperando na sombra do salão de uma festa qualquer. Isso foi até a primeira perda, a primeira pedrada, a estupidez de uma partida que não esperávamos: ainda consigo escutar uma risada perdida nas ladeiras da cidade, quando a visito, sei que você acredita. Muito de nós espera, como poeira cobrindo os móveis, como se nada, como se nosso retorno pudesse desencantar a roda do tempo.
Nossos esconderijos, nossas fugas á tarde, quando cantávamos o mesmo refrão por horas, líamos apenas o que nos interessava nos jornais (era tão pouco), alheios ao mundo que começava a nos ameaçar com a desconstrução cínica de nossas fantasias, prometíamos valentia, continuarmos indomesticáveis ao crescer, mas crescíamos irremediavelmente e por vezes, bebíamos um pouco mais e seguíamos a linha do trem por horas a fio, inventando delírios. Cultivávamos o gosto pelo absurdo, você gargalha quando lembra da vez em que todos nós vestimos roupa de praia, em pleno inverno e fomos para a rua, brincando no meio dos poucos carros que passavam, posando nos sinais de trânsito, apoiando o corpo nos postes. Lembro do horror do pai ao ver os carros enfileirados, á espera, na porta de casa, o cuidado que não tínhamos, a sinceridade quase áspera com que vivíamos juntos, que nos tornava mais cúmplices por sabermos do diferente em cada um, você gosta de lembrar da permissão que me foi dada para que pudesse contar nossos paradeiros, contanto que minha mãe ficasse calada para as outras, que apenas suspeitavam do que aprontávamos. As muitas tardes e madrugadas geladas cortadas por nossos gritos de guerra. Ninguém se divertia como nós, você gosta de acreditar. Eu apenas quero que alguém ainda consiga ser tão jovem como fomos.
Balançamos os pés em cima da ponte, você toca meu braço, minha cabeça em teu ombro, ah se pudéssemos, se sentíssemos, seria perfeito, você guardaria estes tesouros comigo e quem sabe nos salvaríamos do que lentamente nos consome, não, não é nada disso, por familiaridade conquistada sem esforço, quietos, permanecemos, nos olhando com uma serenidade que permite que você beije meu cabelo enquanto brinco com seus dedos entre os meus. Antes, com espanto, pergunto o motivo de continuarmos os mesmos, “não”, você me corrige, “você continua...”, não termina, ao invés, lembra da mania que tínhamos quando queríamos dividir silêncio, “lembra ?”, lembro: “finge que a gente não morre nunca”, e por mágica antiga, somos imortais na tarde da cidade laranja.
<< Home