"Que seja doce."(CFA)

sexta-feira, novembro 24, 2006

De uma foto...

conta como é,
descrevo um quarto,
conta o gosto do vinho,
toca Charlie Parker,
escuto Billie com a flor branca no cabelo,
conta como é,
a tua lembrança de um cheiro,
ou um jeito de olhar.

ri devagar,
fala com esse jeito de beira de mar,
o que é bonito,
como é pescar,
te conto das ondinas
e da minha pele branca
da vontade de fugir para uma ilha
e andar descalça na areia
ouvindo algo tranquilo
longe de tudo que fatalmente se despedaça
na mão de gente estranha ou bruta.

conto do biscoito suíço
que coloco em cima do chá e amolece
tem doce de leite por dentro,
faz cócegas na língua.
me conta o que eles te pedem,
o que vc procura quando anda nas ruas
se vc se sente mais livre porque mais desconhecido
porque um viajante.

conto do sol que bate na janela,
o frio absurdo do ar condicionado,
das minhas fugas noturnas,
das minhas palavras favoritas
e invento histórias para que ele sonhe
sozinho do outro lado do oceano.

sou um pouco menino, ás vezes
conto dos quebrados, das janelas puladas
ele canta ao fundo das músicas para enredar
meus sentidos,
e me chama, sacanamente, tarde da noite,
não prometemos,
não juramos,
não suspiramos,
nenhum truque na manga,
nenhum olhar de canto,
apenas eu, ele e, no meio, o oceano.

quinta-feira, novembro 23, 2006

Tiny Dancer

"Blue jean baby, L.A. lady, seamstress for the band
Pretty eyed, pirate smile, you'll marry a music man
Ballerina, you must have seen her dancing in the sand
And now she's in me, always with me, tiny dancer in my hand"

quando ela abre a porta,
vc pensa ainda que vai voltar.
que pode ser um dia que volte.
de repente.
subitamente.
ela volte, sorrindo do mesmo jeito, mordendo a boca,
rindo e tentando fazer vc sorrir,
fazendo uma daquelas caras de quem não poderia causar mal
nem que quisesse.

o jeito que ela olha, vc sabe
não é o mesmo jeito
não é o mesmo olhar
que vc está acostumado a tantas e tantas vezes
encontrar
são uns olhos estranhos e bons,
que atravessam sem perfurar,
que mudam de cor quando ela chora,
mas ela não chora na frente de estranhos,
embora tenha chorado ao lado que quem nunca a enxergou direito.
(vc não teria como saber)

ela tem as mãos longas,
não sabe batucar nas mesas,
mas ás vezes, se vc tiver sorte,
ela pode cantarolar alguma música
e dançar como se pudesse confiar a vc
a doçura rebelde que ela transpira.
se vc estiver cansado, são os dedos dela
que passarão leves pelo seu rosto,
pelo seu cabelo,
e ela pode fazer vc dormir abraçado ao seu corpo claro
enquanto ela brinca: "finge que estamos num navio".

ás vezes, ela tem um jeito eufórico de criança
em manhã de natal,
por nenhum motivo,
e pode gargalhar e rodopiar no meio da sala,
pintar o rosto, comprar flores,
colocar um vestido e passear descalça
como se o mundo fosse sempre um quintal
e não houvesse razão pra tanto medo.

ás vezes, ela se cala e fixa o olhar num distante
e vc se apavora com aquela tristeza calada,
aquela solidão imóvel, quase serena,
de se afastar tanto de ser gente,
que vc quer tocá-la, desencantá-la,
porque teme que ela não volte e vc não entende.
quando ela retorna, sorri de um jeito estranho,
como se tivesse pisado outras terras e visitado uns tantos lugares
e volta a ser como antes, desobedientemente terna.

mas um dia, vc não percebe
(como vc poderia saber, afinal?)
que sempre dura muito pouco o encanto
e que vc sempre pede tudo ou quase tudo
até que dela nada mais reste a entregar a não ser rendição.
o vento sopra forte demais dentro da sala
e ela olha vc diferente porque sabe
(ela sabe e ás vezes saber é como ter visto o milagre)
que render-se é como colocar grilhões no espírito
domar o que é selvagem dentro do peito
que só se entrega por vontade
nunca por força.

quando ela abre a porta,
é outra que parte, sem malas,
que te desconhece, que te expatria
que te expulsa.
ela não volta porque nasce de novo
a cada partida e
não poderia reconhecer vc.
(mas vc não teria como saber disso,
e se soubesse, teria coragem o suficiente?)

"But oh how it feels so real
Lying here with no one near
Only you and you can hear me
When I say softly, slowly
Hold me closer tiny dancer
Count the headlights on the highway
Lay me down in sheets of linen
you had a busy day today" (Tiny dancer, clique para ouvir e ver)

terça-feira, novembro 21, 2006

Sex and Pixies

"Sitting here wishing on a cement floor
Just wishing that I had just something you wore"
é como uma ameaça, é como ter A peste,
é como pisar um caminho diferente,
por se sentir livre dentro da própria pele.
a contramão do tédio de viver sob licença.

"Run outside in the desert heat
Make your dress all wet and send it to me"
um corpo dança na pista vazia, com os olhos fechados
com um sorriso na boca pelo prazer de ser carne e estar vivo.
os quadris fazem oitos perfeitos, as mãos desenham no ar quente,
a música fala de febre, de vontade, de desejo...
um corpo se move de acordo com as palavras, guiado por sentidos que também sentem fome. nada o incomoda, nada o interrompe, o corpo dança para si mesmo, como se conversasse com o próprio sangue, numa linguagem única, íntima.
um corpo que não busca a permissão de outros corpos, que não precisa de aceitação, passe ou senha: ele É.
cada músculo, cada osso, cada poro ameaçadoramente livre.
o corpo transpira uma liberdade absurda para quem o assiste e é covarde. porque ele ousa, não sente culpa, não se ressente...
o corpo transgride porque não pensa sobre si mesmo,
ele não está doente do julgamento do olhar alheio.

"Bloody your hands on a cactus tree
Wipe it on your dress and send it to me"
ela morde a boca, com força,
quer estar inteira, presente, concreta
"não me deixe ir longe demais"
ele segura o seu rosto como um quadro,
desenha em sua boca, com a língua,
respiram um dentro do outro,
fugitivos, exilados,
o mundo é um deserto e arde na pele,
"isso entre eu e vc" ele diz,
ela vê os desenhos de serpentes nos braços
ela vê as fogueiras enquanto sonha acordada
"isso entre eu e vc" ela diz?pensa?sussurra?
dentro dos olhos, o perigo do espelho
dentro do corpo, a densidade do quasar.
ele segura com força, ela sente o peso das mãos em seus ossos
oferece seu pescoço, "vc quer meu sangue?"
não ter medo de perder o limite,
não ter medo do que fere,
o risco,
a dor,
o desejo,
o visceral,
o mundo é um deserto calcinante,
é grande a sede,
beber da saliva do outro,
devorar decifrando,
são dois que se desafiam?
aliados guerreando mesmo lado?
eles tremem,
eles não sabem as respostas e não se importam.
em comum, o horror á morte que enxergam
em todos que se satisfazem
com metades, com o suficiente.
o mundo é um deserto e eles andam sozinhos.

terça-feira, novembro 14, 2006

0 Outro Lado


ela tem raiva, ás vezes.
vontade de despedaçar coisas.
estilhaçar.
fazer em pedaços.
pisar forte.
ela não respira.
não sabe respirar fundo como os outros, nessas horas.
ela adoraria ferir vc, acredite.
adoraria te fazer sangrar em plena praça,
como se fosse um espetáculo,
porque é assim, assim que aprendeu
mas não sabe com quem
ou onde.
sabe que é preciso arrancar a pele de qualquer um
qualquer um que se ofereça ao sacrifício,
dilacerar o músculo com prazer especial,
talvez assim, ela possa voltar para casa
com a sensação de dever cumprido.

ela foi um guerreiro,
ela adoraria usar facas
e riscar seu corpo inteiro,
observando os desenhos que o vermelho faz
quando escorre pelos lençóis.

ela foi um bárbaro,
ela sentiria um prazer torto
ao fazer seu nervo latejar mais forte
e ver seus olhos revirarem nas órbitas.
ela gosta do poder de causar desastre,
de abusar da força de quem tem a posse da arma.

ela adoraria quebrar vc,
torturar vc,
ela perderia noites e noites e noites,
pensando em maneiras de te fazer sofrer, acredite,
novos meios de causar náusea, desconforto,
ela contaria com detalhes as piores histórias
para que o teu sono fosse repleto de pesadelos.

ela te amarraria ao pé da cama,
cuspiria no teu rosto,
arrancaria suas unhas,
rasparia seu cabelo,
lentamente, roubaria sua identidade,
seu passado, seus gostos,
todo e qualquer resto de humanidade em vc
até que não sobrasse mais nada,
nada que lembrasse
nada que a fizesse se importar.

ela te transformaria em um bicho,
em um resto de coisa sem nome,
sem definição alguma,
porque dentro da sua alma
é tão escuro,
as fogueiras sempre pedem um crime a mais
e ela vive no meio de um deserto de gente
que não sabe sua origem, a cor da sua pele do avesso,
e que se distrai como se ela fosse objeto de uso,
um sabor exótico,
um brinquedo novo.

por isso, ela tem raiva ás vezes,
e sai tarde da noite,
procurando um alívio,
anestesia,
causando e sendo desejo de destruição.
por isso quando ela te beija, fatalmente,
vc sente o gosto do aniquilamento.

segunda-feira, novembro 13, 2006

Truth

"LARRY: I want you to tell me your name.
He gives her some more money.
LARRY: Please.
ALICE: Thank you. My name is Jane.
LARRY: Your real name.
He gives her some more money.
ALICE: Thank you. My real name is Jane.
LARRY: Careful.
He gives her more money.
ALICE: Thank you. Still Jane.
LARRY: I've got about another 500 quid here. Why don't I just give you all this money, and you tell me what your real name is. Alice.
ALICE: I promise.
He gives her the money.
ALICE: Thank you. My real name is plain... Jane Jones."
(trecho de Closer)

quarta-feira, novembro 08, 2006

Trecho de Ana Friedman Gonzalo de Julia Mendes

(explicação: Julia me contou que depois de escrever esse trecho do conto, que é lindo e merece ser lido, pensou em mim como a loura que aparece no final. li, adorei e trouxe pra cá.)

externalizou
" foi aos 23 anos que aconteceu um fato realmente marcante. mas se eu o conto como um fato já marcante, talvez ele não soe tanto assim. para ana foi. para ana foi e ela nem sabia.
num dos dias, se divertindo sozinha como de costume começou a vestir algumas roupas e interpretar personagens no espelho, fez muitos até achar um casaco que parecia um de pirata. gostou do estilo, pôs uma calça qualquer preta, um cinto de marco que permanecera por lá, uma blusa branca meio desbotada, pegou um colar de gio que parecia algo como uma ancora. na verdade, ela fingiu que parecia uma ancora. pôs um chapéu marrom escuro e desgostou dos seus cabelos. fez um rabo e continuou desgostando dos cabelos. enfim, jogou tudo para dentro do chapéu e ficou parecendo como se tivesse os cortado. fez uma expressão de quem é pirata a muito tempo e riu satisfeita. seus seios não eram mínimos, mas também não eram grandes. eram seios justos. de alguma forma nem se apercebiam naquela roupa extravagante. seu rosto era delicado e suave. não tinha grandes traços femininos, nem grandes traços masculinos. tinha apenas traços. quase sem cílios, quase sem sobrancelhas. olhou mais uma vez para o espelho e falou: meu nome é anna friedman gonzalo. não. meu nome é gonzalo.


saiu na rua e foi até o bar onde ia sempre na época de marco. sentou na mesa e de instantâneo lembrou uma imagem de seu pai pedindo gin ao garçom. sempre com pose de homem. - traz um gin meu camarada! - copiou-o exatamente. sorriu de um jeito de sorrir bonito, como antônio sabia fazer e apoiou o braço sobre a mesa. como marco. como antônio. como seu pai. como todos os homens, menos felipe.

bebeu um, dois, três copos de gim e se sentiu feliz. falava alto com o garçom e tinha uma risada graciosa. quando a madrugada já vinha despencando decidiu voltar pra casa e assim o fez. depois disso, periodicamente anna começou a ser gonzalo. toda quinta-feira. gonzalo aparecia naquele mesmo bar, onde os camaradas, como chamava quase todo mundo, já o tinham nomeado o rei do gim. - meu nome é gonzalo. - e todos se divertiam com ele. com ela. com ele e com ela. numa das vezes, inesperadamente uma loira. bochechas macias. cabelos curtos e nem muito curtos, cacheados um pouco, lisos um outro pouco. sentou-se numa ousadia qualquer na sua mesa. bem a sua frente e disse - serei a rainha do gim essa noite. - anna não gostou da intromissão, ou pareceu não gostar e procurou não dar atenção para a moça. chamou o garçom e pediu uma vodca. - então você não vai olhar pra mim? - ana se concentrou, tomou um gole de vodca e cantou dentro de si qualquer melodiazinha que a fizesse esquecer os outros sentidos de percepção. mas não adiantava. ela sentia uns olhos plantados nela. e lá estavam eles. intactos. fixos. abusivos. ana levantou a cabeça, por um segundo sentiu uma vontade de chorar e só pode resmungar - meu nome não é gonzalo. muito bem, gonzalo que não é gonzalo, qual o seu nome? anna. anna friedman. é um belo nome, você aceita um cigarro? não fumo. ah, só o gonzalo que fuma então? talvez. anna você e corajosa? quero dizer, você tem culhões? - foi o único momento em que ana conseguiu olhar diretamente nos olhos da mulher - não importa.

sexta. sexta-feira como haveria de ser. acordou num salto, ainda estava escuro, ou não, na verdade eram as cortinas. deus, será que eu estive tão bêbada que sequer me lembro da noite passada? e não sabia mesmo. como havia chegado em casa. e qualquer coisa. sentiu medo. como um medo nunca sentido. anna não era dos medos.

quinta-feira próxima ana não foi ao bar. não vestiu a roupa de gonzalo. não lembrou da loira. não fez mais nada. ana foi só ana. como sempre havia sido. e esqueceu. esqueceu pra sempre quem fora anna friedman. e quem poderia ser."

terça-feira, novembro 07, 2006

Momento de Clareza

"That day, That day
What a mess what a marvel
I walked into that cloud again
And I lost myself
And I'm sad, sad, sad
Small, alone, scared

Craving purity
A fragile mind and a gentle spirit

That day, That day,
What a marvelous mess
This is all that I can do
I'm done to be me
Sad, scared, small, alone, beautiful
It's supposed to be like this
I accept everything
It's supposed to be like this

That day, That day
I lay down beside myself
In this feeling of pain, sadness
Scared, small, climbing, crawling
Towards the light
And it's all that I see and
I'm tired and I'm right
And I'm wrong
And it's beautiful

That day, That day
What a mess, what a marvel
We're all the same
But no one thinks so
And it's okay
And I'm small and I'm divine
And it's beautiful
And it's coming
And it's already here
And it's absolutely perfect

That day, That day
When everything was a mess
And everything was in place
And there's too much hurt
Sad, small, scared, alone
And everyone's a cynic
And it's hard and it's sweet
But it's supposed to be like this

That day, That day
When I sat in the sun
And I thought and I cried
Cause I'm sad, scared, small
Alone, strong
And I'm nothing and I'm true
Only a brave man can break through
And it's all okay
Yeah, it's okay

That day, That day
That day, That day
That day, That day
That day, That day
So sweet, can you feel it? (Can you feel it?)
Are you here? Are you with me?
I can feel it
And its beautiful
That day, That day
That day, absolutely perfect" ( That day, Natalie Imbruglia)

* música que acho linda e, ás vezes, acordo pensando nela

segunda-feira, novembro 06, 2006

Restless Heart



"The stars are blazing like rebel diamonds cut out of the sun
When you read my mind"
( The Killers)

só mais uma criança entre as outras
e elas são tantas que perdem seus rostos
e elas são tantas com o mesmo gosto
e elas são tantas que perderam o nome.

brinquedos são só brinquedos, ele diz
no centro do picadeiro.
costumava ser engraçado,
até parecer desespero.
no final, costumava estar inteiro
agora, é um brinquedo quebrado.

mas ninguém paga mais pelo show, boneca, vc devia tentar algo novo.

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danço com olhos fechados
invento mentiras aveludadas
mas posso morder com a verdade
se vc gostar do gosto real que as coisas tem.
vejo fosforescente no escuro
e não tenho medo de ir mais longe
se chegar, me interessa.

sei arrancar sangue com palavras
como se fossem pedras
mas posso ser doce,
e fazer mel com papel e tinta.

minha pele do avesso é azul, aviso
as marcas não aparecem mas são perigosas
porque me tornam arredia quando o tempo muda.
me diga algo honesto apenas
e posso ser mansa.
algo que Seja, e entrego a senha
o mapa está em mim,
mas é preciso estar atento
porque saber o nome da Fera nunca foi suficiente.

sou um animal estranho que canta
com as portas trancadas
por horas e horas.
existe o mistério, e daí?
existe muito mais além disso,
entendo a crueldade por dentro,
como se provasse dela
em copo, um veneno a mais.

sou mais livre do que posso ou quero explicar,
e não me importo
realmente não me importo
com julgamentos e conceitos e as conversas muito sérias
daqueles que não tem mais febres
e não acordam no meio da noite
ardendo de fome.

tenho todo o tempo do mundo
e pressa
e doçura
e raiva
e compaixão
e violência
e brandura
todos os pecados
todas as virtudes
alinhadas,
continuo
porque resisto
porque estou acordada
porque não sou a única
e porque posso.
simples assim,
eu posso.