Trecho de Ana Friedman Gonzalo de Julia Mendes
(explicação: Julia me contou que depois de escrever esse trecho do conto, que é lindo e merece ser lido, pensou em mim como a loura que aparece no final. li, adorei e trouxe pra cá.)
externalizou
" foi aos 23 anos que aconteceu um fato realmente marcante. mas se eu o conto como um fato já marcante, talvez ele não soe tanto assim. para ana foi. para ana foi e ela nem sabia.
num dos dias, se divertindo sozinha como de costume começou a vestir algumas roupas e interpretar personagens no espelho, fez muitos até achar um casaco que parecia um de pirata. gostou do estilo, pôs uma calça qualquer preta, um cinto de marco que permanecera por lá, uma blusa branca meio desbotada, pegou um colar de gio que parecia algo como uma ancora. na verdade, ela fingiu que parecia uma ancora. pôs um chapéu marrom escuro e desgostou dos seus cabelos. fez um rabo e continuou desgostando dos cabelos. enfim, jogou tudo para dentro do chapéu e ficou parecendo como se tivesse os cortado. fez uma expressão de quem é pirata a muito tempo e riu satisfeita. seus seios não eram mínimos, mas também não eram grandes. eram seios justos. de alguma forma nem se apercebiam naquela roupa extravagante. seu rosto era delicado e suave. não tinha grandes traços femininos, nem grandes traços masculinos. tinha apenas traços. quase sem cílios, quase sem sobrancelhas. olhou mais uma vez para o espelho e falou: meu nome é anna friedman gonzalo. não. meu nome é gonzalo.
saiu na rua e foi até o bar onde ia sempre na época de marco. sentou na mesa e de instantâneo lembrou uma imagem de seu pai pedindo gin ao garçom. sempre com pose de homem. - traz um gin meu camarada! - copiou-o exatamente. sorriu de um jeito de sorrir bonito, como antônio sabia fazer e apoiou o braço sobre a mesa. como marco. como antônio. como seu pai. como todos os homens, menos felipe.
bebeu um, dois, três copos de gim e se sentiu feliz. falava alto com o garçom e tinha uma risada graciosa. quando a madrugada já vinha despencando decidiu voltar pra casa e assim o fez. depois disso, periodicamente anna começou a ser gonzalo. toda quinta-feira. gonzalo aparecia naquele mesmo bar, onde os camaradas, como chamava quase todo mundo, já o tinham nomeado o rei do gim. - meu nome é gonzalo. - e todos se divertiam com ele. com ela. com ele e com ela. numa das vezes, inesperadamente uma loira. bochechas macias. cabelos curtos e nem muito curtos, cacheados um pouco, lisos um outro pouco. sentou-se numa ousadia qualquer na sua mesa. bem a sua frente e disse - serei a rainha do gim essa noite. - anna não gostou da intromissão, ou pareceu não gostar e procurou não dar atenção para a moça. chamou o garçom e pediu uma vodca. - então você não vai olhar pra mim? - ana se concentrou, tomou um gole de vodca e cantou dentro de si qualquer melodiazinha que a fizesse esquecer os outros sentidos de percepção. mas não adiantava. ela sentia uns olhos plantados nela. e lá estavam eles. intactos. fixos. abusivos. ana levantou a cabeça, por um segundo sentiu uma vontade de chorar e só pode resmungar - meu nome não é gonzalo. muito bem, gonzalo que não é gonzalo, qual o seu nome? anna. anna friedman. é um belo nome, você aceita um cigarro? não fumo. ah, só o gonzalo que fuma então? talvez. anna você e corajosa? quero dizer, você tem culhões? - foi o único momento em que ana conseguiu olhar diretamente nos olhos da mulher - não importa.
sexta. sexta-feira como haveria de ser. acordou num salto, ainda estava escuro, ou não, na verdade eram as cortinas. deus, será que eu estive tão bêbada que sequer me lembro da noite passada? e não sabia mesmo. como havia chegado em casa. e qualquer coisa. sentiu medo. como um medo nunca sentido. anna não era dos medos.
quinta-feira próxima ana não foi ao bar. não vestiu a roupa de gonzalo. não lembrou da loira. não fez mais nada. ana foi só ana. como sempre havia sido. e esqueceu. esqueceu pra sempre quem fora anna friedman. e quem poderia ser."
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