“Fiquei sabendo que, mesmo assim, apesar e por causa disso, eu ficaria ciumento e obsessivo como um psicopata de cinema. Faria perguntas insidiosas sobre seu passado, ex-amantes e namorados. Sobre quem te levou para a cama, e quem te deixou lá. Descobri que ficaria com taquicardia e mãos trêmulas ao imaginar você com outra pessoa, no futuro ou no passado. Descobri que você iria despertar o meu melhor e o meu pior, em proporções igualmente febris. E também descobri que iríamos superar isso. E, depois de um ano, nos casar: montaríamos um apartamento cheio de coisas suas e minhas. Um novo jeito de fazer tudo, nem seu, nem meu, mas nosso. Você me ensinaria, com seus modos calados, a viver melhor. Tomar banho lavando as costas, comer várias vezes por dia, pensar menos. Você iria combater meu impulso suicida contra o nosso amor. Não sei se você chegou a descobrir isso ainda, mas não é que o amor simplesmente acabe. O amor é morto em dias claros como esse. Carrega em si a semente desse assassinato. Às vezes o crime é culposo. Em outras, cheiramos a fumaça que sai do buraco da bala com prazer dissoluto. Mas o normal é que seja morto corriqueiramente, como um tropeço. Com você seria diferente. Descobri, só de olhar o jeito do cabelo cair na sua testa, que você lutaria até o fim para que eu não esquartejasse o nosso amor. Você iria conseguir.
Sabendo disso tudo, foi como se não tivesse escolha. Deixei uns trocados na mesa, levantei e lancei um último olhar na sua direção, já quase virando a esquina. Depois disso, cheguei a te procurar em outros bares e saideiras. Em alguns meses, acabei esquecendo seus olhos verdes e, com eles, tudo que descobri, em não mais que cinco segundos, num dia daqueles em que o centro fica vazio e a gente do escritório joga papel picado pela janela. O amor é morto em dias claros como esse.” (JP Cuenca, na coluna de fevereiro, TPM)
Esquartejamentos acontecem, não há o que se possa fazer, meu amigo, assistimos com espanto, os nacos, pedaços inteiros que se perdem pra sempre. Pra sempre?, você me pergunta, certo da imprecisão das coisas e das voltas que o velho conhecido mundo que fingimos desconhecer costuma dar. Afirmo: algumas coisas quando perdidas são pra sempre. Não que fiquem marcadas, mas são gastas de tal forma, ou sangram com tal violência que não sobrevivem. Não, você não precisa olhar com tanto desconsolo, meu amigo, talvez seja natural que isso aconteça, não sei, não tenho todas as respostas.
Imagine que, de repente, o “objeto de seu amor” (odeio essa expressão) não existiu, foi inventado por você no esqueleto de uma estranha qualquer. Como desfazer ou descobrir a ilusão? Como culpar o outro por algo que foi criado além de entendimento e permissão? Ah, meu amigo, os truques de baú fundo falso que nossa mente é capaz ainda me fascinam. Seria como viver uma história em um mundo paralelo e acordar em uma realidade crua, sem artifícios, sem photoshop, entende? E olhar aterrorizado, procurando o familiar nas coisas vistas como se de primeira vez. Ou talvez, não, não seja nada disso, e invente coisas no sexto chopp, para que seu coração não se contorça e te confesse que na verdade, o problema seja apenas deslealdade ou covardia. Uma sacana acompanhando a outra, como irmãs siamesas, percebe? Você engoliria mais um amendoim ou dois, acenderia um cigarro, ficaria calado e dividiríamos um silêncio profundo e escuro apesar de sentados em um bar exageradamente iluminado. Que existem pessoas e pessoas, quer dizer, pessoas se fingindo gente, mas, sabe-se lá, em que categoria se encaixam, são seres, entende? Seres andando entre nós- pessoas que arriscam, confessam e choram juntas, cabeça com cabeça, abraçados como irmãos em armas, em uma madrugada antiga de uma cidade anciã.
E sabe, meu amigo, riremos de tudo, quando passar. Riremos o sorriso limpo de quem volta, com as marcas da guerra, não por sermos assassinos mas por sobrevivermos heroicamente ao excesso de medo dos seres e á falta de safe net em nossos saltos. Riremos porque é assim que encaramos esse caminho: frente, peito aberto, sem gritar virtudes, sabendo bem de cada sombra dentro e de como range a madeira do peito em certos dias. Amantes do vento. Como a resposta que dei a minha mãe e você riu de dobrar-se, quando me chamava de pássaro da asa quebrada: eu sempre vou poder voar. E mais alto do que muitos agüentariam. Lembro do seu rosto vermelho ainda de riso,meu amigo e do seu olhar sério de quem percebe que havia acabado de sarar, ali, naqueles segundos, eu estava de novo livre, asas firmes, prontas. Pois assim como aconteceu comigo, meu amigo, acontecerá contigo. Um dia desses, você acorda como se tivesse nascido naquele exato instante do abrir os olhos e notar-se carne, como se seus sentidos estivessem de novo ilesos ou mais alertas e fosse tão surreal estar consciente de si mesmo e desse renascimento que precisasse de um novo nome, como fazem aqueles que recebem algum sinal do Sagrado ou alcançam a iluminação. Mas ao mesmo tempo, você sentirá que não é para tanto, é só o curso natural das coisas e, meu amigo, como esse curso é bonito quando vivido de alma inteira.