"Que seja doce."(CFA)

sexta-feira, setembro 22, 2006

Das tantas mortes

coisas morrem todos os dias.
na minha frente.
vc repara?
acordam-me madrugada adentro, fantasmas mudos.
não me dizem nada, não fazem sinal, apenas permanecem perto,
comungando da minha solidão.
ás três da manhã, o mundo é extraordinário e venta forte.
ás quatro, o quarto é o lugar mais solitário do mundo.
um soluço seco e a falta de ponto de apoio me fazem buscar a voz dele.
acordado de um sonho qualquer, saber que em algum lugar ele está e me espera.
ou não me espera.
mas me ama.
com certeza, me ama.
vontade de dizer: me busca, como nos tempos da escola, quando ficava febril.
mas não posso.
o tempo passa.
e aprendemos a sair das febres, a doer no calado.

ás três da manhã, alguém se incomoda e fecha todas as janelas.
mas o vento é como eu.
ele se fragmenta, ele muda, se transforma e passa entre vãos desconhecidos,
faz barulho, dá sua presença.
o vento me faz sorrir ás três da manhã,
quando o mundo é um lugar completamente novo
apesar de muito muito muito muito muito velho o coração do homem.

eu olho pra baixo, ás vezes.
olho para trás, ás vezes.
para ver quantas foram e quantas ainda faltam.
quantas.
tantas.
o costume de morrer sempre e acordar amanhã.
morrer para saber acordar amanhã com olhos limpos.
a cantiga no fundo, estilhaça, "marinheiro só"
sempre sempre sempre o navio,
no longe, a voz do homem.
perto, ninguém,
ás três da manhã, todos os milagres acontecem longe dos olhos do homem
tendo o vento como testemunha.
vc me faz sangrar quando e onde já sangrei demais.
e deixa um oco no peito.
um oco.
um eco.
é só mais uma morte, ela diria, naturalmente distante.
só mais uma,
mas estou tão cansada,
que se perdem as palavras
se perde o sentido
e de repente,
não há mais nada.
nada.
um oco.
um eco.
e ninguém a velar o morto.
nenhuma luz acesa no caminho.