Um outro Coração de Vidro*
(outro título de um livro de José M.)
“Hoje tenho quarenta e oito anos e às vezes na minha saudade eu tenho impressão que continuo criança(...)Hoje sou eu que tento distribuir as bolas e as figurinhas, porque a vida sem ternura não é lá grande coisa. Ás vezes sou feliz na minha ternura, ás vezes me engano, o que é mais comum.
Naquele tempo, no tempo do nosso tempo, eu não sabia que muitos anos antes, um Príncipe idiota ajoelhado diante de um altar perguntava aos ícones, com os olhos cheios d'água:
"POR QUE CONTAM COISAS ÀS CRIANCINHAS?"
A verdade, meu querido Portuga, é que a mim contaram as coisas muito cedo. (Trecho de Meu pé de Laranja Lima, de José Mauro de Vasconcelos)
No centro da cidade, as árvores chovem. É preciso usar guarda-chuva para atravessar a praça, onde mulheres e homens trazem rostos voltados para o chão. Poderia dizer que tanto faz, mas mentira. Vejo os vincos na boca da senhora de cabelo mal-pintado: linhas que caem, tristes ou sérias. Um andar do prédio de janelas verdes queima, os papéis fazem fumaça cinza que se mescla ao céu nublado. Fundir, misturar-se mas encontrar o caminho de volta: foi o que ele disse ao ouvido da mulher enquanto esta insistia em sonhar noite adentro. A madeira estala no piso, o metal expande e contraí as estruturas, quando chove, pode-se ouvir o chiado de tudo que se acalma depois de ferver dia inteiro.
De dentro do carro verde metálico, a menina se encanta com os vapores que saem do asfalto enquanto a mãe se aborrece com meninos montados em latas de lixo, fazendo malabarismos com bolinhas sujas: “eles atrapalham o trânsito”, ela diz enquanto confere o esmalte das unhas, mas a menina não acha. No carro azul ao lado, um homem atende o celular com ar aborrecido e ouve a voz familiar: “alarme falso”, ele balbucia alguma coisa como “podemos tentar de novo”, mas intimamente sente um certo alívio e tamborila no volante uma canção qualquer. Um rapaz de motocicleta sem capacete, impacientemente fica acelerando a moto enquanto aguarda o sinal livre e pensa que ontem, por um triz, não derrapou em uma das curvas do Joá, “quem sabe um dia?” pensa sorrindo, os pinos dentro da perna doem e por isso, ele sabe que vai chover.
O ar quente do quarto acorda a carne que encontra o frio das coisas que pensamos conhecer conteúdo e, no entanto, são vazias. Uma mulher levanta antes que o despertador toque, caminha pelo corredor sem precisar acender as luzes, abre a geladeira, escolhe uma maçã e senta-se no parapeito da janela. Respira longa e pausadamente o ar aparentemente limpo da manhã. Aguarda os sinos da igreja para saber a hora certa de arrumar-se para o trabalho. Não tem pressa porque não precisa. Uma criança corre em disparada pelo pátio e cai, machucando os joelhos: ela sorri quando o menino de cabelos vermelhos se debruça e gentilmente, remove seus cabelos do rosto, para poder ver seus olhos, pergunta se está tudo bem e, pegando-a pela mão, a leva até o bebedor, onde lava seu machucado. Depois, despede-se dela, criança, e pegando seus livros, direciona-se aos portões.
Sem olhar para os lados, um menino de cabelos vermelhos atravessa a rua, um carro verde metálico não consegue parar a tempo, “os freios, merda, esqueci dos freios”, ela pensa quando atinge a carne compacta, imagina o aborrecimento de chamar a polícia, prestar socorro, “logo na frente do colégio da menina”, olha o esmalto gasto das unhas e pensa aborrecidíssima que terá que desmarcar a manicure. A menina a tudo assiste e corre em direção ao corpo largado perto do meio-fio, inerte: toca seu rosto, enquanto a mãe grita “não toque nele, você não sabe quem é”, e delicadamente tira o cabelo ensangüentado da testa. Os olhos parados por um instante se movem e encontram os da menina. Só por um instante e é grande o silêncio. Insuportavelmente grande. Até que os barulhos da rua, os gritos da mãe, as sirenes da ambulância, acordam a pequena de seu transe, e por mais, que as pessoas a rodeiem e distraiam, ela sabe: está estilhaçado o coração de vidro vermelho que pulsa dentro das coisas que conhece como suas. Quebrado pra sempre.
No centro da cidade, as árvores chovem. É preciso usar guarda-chuva para atravessar a praça, onde mulheres e homens trazem rostos voltados para o chão. Poderia dizer que tanto faz, mas mentira. Vejo os vincos na boca da senhora de cabelo mal-pintado: linhas que caem, tristes ou sérias. Um andar do prédio de janelas verdes queima, os papéis fazem fumaça cinza que se mescla ao céu nublado. Fundir, misturar-se mas encontrar o caminho de volta: foi o que ele disse ao ouvido da mulher enquanto esta insistia em sonhar noite adentro. A madeira estala no piso, o metal expande e contraí as estruturas, quando chove, pode-se ouvir o chiado de tudo que se acalma depois de ferver dia inteiro.
De dentro do carro verde metálico, a menina se encanta com os vapores que saem do asfalto enquanto a mãe se aborrece com meninos montados em latas de lixo, fazendo malabarismos com bolinhas sujas: “eles atrapalham o trânsito”, ela diz enquanto confere o esmalte das unhas, mas a menina não acha. No carro azul ao lado, um homem atende o celular com ar aborrecido e ouve a voz familiar: “alarme falso”, ele balbucia alguma coisa como “podemos tentar de novo”, mas intimamente sente um certo alívio e tamborila no volante uma canção qualquer. Um rapaz de motocicleta sem capacete, impacientemente fica acelerando a moto enquanto aguarda o sinal livre e pensa que ontem, por um triz, não derrapou em uma das curvas do Joá, “quem sabe um dia?” pensa sorrindo, os pinos dentro da perna doem e por isso, ele sabe que vai chover.
O ar quente do quarto acorda a carne que encontra o frio das coisas que pensamos conhecer conteúdo e, no entanto, são vazias. Uma mulher levanta antes que o despertador toque, caminha pelo corredor sem precisar acender as luzes, abre a geladeira, escolhe uma maçã e senta-se no parapeito da janela. Respira longa e pausadamente o ar aparentemente limpo da manhã. Aguarda os sinos da igreja para saber a hora certa de arrumar-se para o trabalho. Não tem pressa porque não precisa. Uma criança corre em disparada pelo pátio e cai, machucando os joelhos: ela sorri quando o menino de cabelos vermelhos se debruça e gentilmente, remove seus cabelos do rosto, para poder ver seus olhos, pergunta se está tudo bem e, pegando-a pela mão, a leva até o bebedor, onde lava seu machucado. Depois, despede-se dela, criança, e pegando seus livros, direciona-se aos portões.
Sem olhar para os lados, um menino de cabelos vermelhos atravessa a rua, um carro verde metálico não consegue parar a tempo, “os freios, merda, esqueci dos freios”, ela pensa quando atinge a carne compacta, imagina o aborrecimento de chamar a polícia, prestar socorro, “logo na frente do colégio da menina”, olha o esmalto gasto das unhas e pensa aborrecidíssima que terá que desmarcar a manicure. A menina a tudo assiste e corre em direção ao corpo largado perto do meio-fio, inerte: toca seu rosto, enquanto a mãe grita “não toque nele, você não sabe quem é”, e delicadamente tira o cabelo ensangüentado da testa. Os olhos parados por um instante se movem e encontram os da menina. Só por um instante e é grande o silêncio. Insuportavelmente grande. Até que os barulhos da rua, os gritos da mãe, as sirenes da ambulância, acordam a pequena de seu transe, e por mais, que as pessoas a rodeiem e distraiam, ela sabe: está estilhaçado o coração de vidro vermelho que pulsa dentro das coisas que conhece como suas. Quebrado pra sempre.
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